José Everaldo Rodrigues Filho

Licenciado em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará.

Bacharelado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Mestrado em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.

Laureado em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade Lateranense de Roma

Bacharel em Direito e Advogado OAB-AL 13960


segunda-feira, 23 de outubro de 2017

COLONIZAÇÃO IDEOLÓGICA NOS CINCO CONTINENTES



O Santo Padre, o papa Francisco, aos 27/08/2015 denuncia a “colonização ideológica”: "Na Europa, nos Estados Unidos, na América Latina, na África, em alguns países da Ásia, existem verdadeiras colonizações ideológicas. E uma delas - digo-a claramente por 'nome e sobrenome' - é a ideologia de gênero (gender). Hoje às crianças - às crianças! na escola, ensina-se isto: o sexo, cada um pode escolhê-lo. E por que ensinam isto? Porque os livros são os das pessoas e instituições que lhes dão dinheiro" (Discurso aos Bispos da Polônia, 27.08.2015).

A ideologia de gênero quer eliminar a ideia de que os seres humanos se dividem em dois sexos, afirmando que as diferenças entre homem e mulher não correspondem a uma natureza fixa, mas são produtos da cultura de um país, de uma época. Algo convencional, não natural, atribuído pela sociedade, de modo que cada um pode inventar-se a si mesmo e o seu sexo.

Muitos autores preferem chamá-la de Ideologia da Ausência de Sexo, é uma crença segundo a qual os dois sexos — masculino e feminino — são considerados construções culturais e sociais, e que por isso os chamados “papéis de gênero” (que incluem a maternidade, na mulher e paternidade, no homem), são construções da sociedade “machista”, cujo objetivo é destruir a igualdade de todo o ser humano. Em outras palavras é fruto da cultura ocidental marcada pela influência judaido cristã.

A religião judaico cristã é a culpada de impor aos seres humanos estes dois tipos de gênero – homem e mulher – e, a única forma de se libertar desta opressão é desconstruir o ideótipo dos dois gêneros e propor a sociedade uma pleno direito de escolha.

A feminista norteamericana Gloria Steinem queixa-se da "falsa divisão da natureza humana em 'feminino' e em 'masculino' (sic). A escritora francesa Simone Beauvoir pensou a gravidez como “limitadora da autonomia feminina”, porque, alegadamente, “a gravidez cria laços biológicos entre a mulher e as crianças, e por isso, cria um papel de género”. Defende-se a ideia segundo a qual não existe apenas a mulher e o homem, mas que existem também “outros gêeros”; e que qualquer pessoa pode escolher um desses “outros gêneros”.

A deputada holandesa Kartika Tamara Liotard, propôs ao parlamento Europeu uma norma diretiva para todo o continente, para que em toda a Europa fossem proibidos a menção dos gêneros masculino e feminino, tanto nos meios de comunicação social como nos sistemas de educação. Aliás na Holanda já se legalizou a Eutanásia e está em vias de legalizar a pedofilia.

Na Holanda já se fala de 38 gêneros: homossexuais, lésbicas, andrógenos, bi-gêneros, mulheres para homens e homens para mulheres, gênero-variáveis, gênero-queers (construção social), intersexuais, nenhum gênero, assexuais, não-binários, pan-gêneros e pansexuais, transmachos, transhomens, transfêmeas, trans-mulheres, transhumanos, transcompartilhados, transfemininos, transssexuais, interfêmeas, intermachos, interhomens, intermulheres, inter-humanos, intergêneros, intersexuais, duogêneros, andrógenos, hermafroditas, dois espíritos, três gêneros, quatrigêneros, travestis, crossgênero, gênero Nulo.

Segundo a socióloga alemã Gabriele Kuby: “A Ideologia de Gênero é a mais radical rebelião contra Deus que é possível: o ser humano não aceita que é criado homem e mulher, e por isso diz: 'Eu decido! Esta é a minha liberdade!' — contra a experiência, contra a Natureza, contra a Razão, contra a ciência! É a perversão final do individualismo: rouba ao ser humano o que lhe resta da sua identidade, ou seja, o de ser homem ou mulher, depois de se ter perdido a fé, a família e a nação. É uma ideologia diabólica: embora toda a gente tenha uma noção intuitiva de que se trata de uma mentira, a Ideologia de Género pode capturar o senso-comum e tornar-se em uma ideologia dominante do nosso tempo.”

Em Dezembro de 2012, o Papa Bento XVI referiu, num discurso à cúria romana, que o uso do termo “gênero” pressupõe uma “nova filosofia da sexualidade”: “De acordo com esta filosofia, o sexo já não é considerado um elemento dado pela Natureza e que o ser humano deve aceitar e estabelecer um sentido pessoal para a sua vida. Em vez disso, o sexo é considerado pela Ideologia de Gênero como um papel social escolhido pelo indivíduo, enquanto que no passado, o sexo era escolhido para nós pela sociedade. A profunda falsidade desta teoria e a tentativa de uma revolução antropológica que ela contém, são óbvias.

As pessoas [que promovem a Ideologia de Gênero] colocam em causa a ideia segundo a qual têm uma natureza que lhes é dada pela identidade corporal que serve como um elemento definidor do ser humano. Elas negam a sua natureza e decidem que não é algo que lhes foi previamente dado, mas antes que é algo que elas próprias podem construir.

A ideia bíblica da criação, a essência da criatura humana é a de ter sido criada homem e mulher. Esta dualidade é um aspecto essencial do que é o ser humano, como definido por Deus. Esta dualidade, entendida como algo previamente dado, é o que está a ser agora colocado em causa.

Quando a liberdade para sermos criativos se transforma em uma liberdade para nos criarmos a nós próprios, então é o próprio Criador que é necessariamente negado e, em última análise, o ser humano é despojado da sua dignidade enquanto criatura de Deus que tem a Sua imagem no âmago do seu ser.

A Ideologia de Gênero é uma moda muito negativa para a Humanidade, embora se disfarce com bons sentimentos e em nome de um alegado progresso, alegados direitos, ou em um alegado humanismo. Por isso, a Igreja Católica reafirma o seu assentimento em relação à dignidade e à beleza do matrimônio como uma expressão da aliança fiel e generosa entre uma mulher e um homem, e recusa e refuta as filosofias de gênero, porque a reciprocidade entre o homem e a mulher é a expressão da beleza da Natureza pretendida pelo Criador.”

Em 2011, um documentário transmitido em rede nacional na Noruega abalou a credibilidade dos defensores da ideologia de gênero nos países da Escandinávia. A medida veio após a exibição, em 2010, do filme “Hjernevask” (“Lavagem Cerebral”), que questionava os fundamentos científicos dessas teorias – que, de fato, não passam de teorias sem comprovação empírica.

Na Noruega, o documentário gerou intenso debate público sobre essa ideologia, que, mundo afora, Brasil incluso, vem sendo imposta de modo quase inquestionável por programas governamentais amparados em vasto respaldo midiático.

A produção do sociólogo e ator Harald Eia, comediante e sociólogo noruegues, que contrapõe as afirmações dos defensores da teoria de gênero com outras de estudiosos das neurociências e da psicologia evolutiva. Enquanto os teóricos do gênero afirmam que não há fundamento biológico nas diferenças de comportamento entre homens e mulheres e que elas se devem meramente a construções sociais, os outros cientistas mostram resultados de testes empíricos que constatam diferenças inatas nas preferências e comportamentos de homens e mulheres.

Os estudiosos das neurociências admitem que a cultura exerce influência nos comportamentos, mas demonstram que os genes são determinantes para algumas condutas. Já os teóricos do gênero afirmam que “não veem verdade” nas pesquisas dos neurocientistas, embora toda a base dos seus estudos de gênero seja apenas teórica e não empírica.

No vídeo, a “filósofa do gênero” Catherine Egeland, uma das entrevistadas, chega a afirmar que “não se interessa nem um pouco” por esse tipo de ciência e que “é espantoso que as pessoas se interessem em pesquisar essas diferenças” (!)

O Conselho Nórdico de Ministros, que inclui autoridades da Noruega, da Suécia, da Dinamarca, da Finlândia e da Islândia, determinou a suspensão dos financiamentos até então concedidos ao Instituto Nórdico de Gênero, entidade promotora de ideias ligadas às chamadas “teorias de gênero“. Este Instituto recebia por ano 56 milhões de Euros por ano, isto é cerca de 220 milhões de reais por ano para promover campanhas mundiais de dissiminação da ideologia de gênero.

No documentário, Eia, com sua equipe de filmagem, faz algumas perguntas simples aos mais importantes pesquisadores sobre “Gênero” do NIKK. Depois, entrevista os mais importantes cientistas no Reino Unido e Inglaterra. Harald mostra a todos os cientistas as respostas fornecidas por seus colegas. Eia mostra em vídeo como as afirmações das autoridades nórdicas em Gênero, que orientam as dispendiosas políticas de igualdade, causam espanto na comunidade científica – principalmente porque fica explícito como os pesquisadores de gênero baseiam suas afirmações nas suas próprias teorias, sem fundamentação em pesquisa empírica. Harald então volta a Oslo e mostra as gravações aos pesquisadores do NIKK. Acontece que, diante de pesquisas científicas empíricas, os “Especialistas em Gênero” não conseguem defender suas teorias perante a dados reais.

Após o vexame da exposição pública da farsa que são as pesquisas de gênero, as pessoas começaram a fazer perguntas. Afinal, são 56 milhões de euros do dinheiro dos impostos usados para patrocinar as “pesquisas” de ideólogos de gênero sem qualquer credenciamento científico exceto o fornecido por eles mesmos.

O documentário é feito por algumas perguntas honestas, simples e objetivas, feitas por um sociólogo e comediante sinceramente interessado em desvendar o “Paradoxo da Igualdade de gênero”. Mas isso foi suficiente para mostrar que todo celebrado edifício da “Teoria de Gênero” não conta com alicerces, mas sim com a exploração da ingenuidade pública. Quiçá essa lição seja aprendida por mais pessoas em outros países, outros continentes e na ONU, onde essa ideologia é acalentada pela conveniência para os ocupantes dos gabinetes prestigiosos.

O documentário completo de Harald Eia é intitulado de “hjernevask” (“Lavagem cerebral” em norueguês).

A Criação de uma Sociedade de Pervertidos

            O grande risco da ideologia de gênero é a construção de uma sociedade de pervertidos. A perversão é um desvio de comportamento, popularmente, o termo é utilizado para indicar uma espécie de "depravação sexual. A perversão estrutura-se sobre uma vontade de transgredir a ordem natural das coisas, de perturbar a norma social. A pessoa perversa busca o prazer continuamente, tanto em seus comportamentos como em suas fantasias. Normalmente, este desvio de comportamento começa a se estruturar ainda na infância, se desenvolvendo na fase adulta. Os sintomas podem variar de acordo com o paciente. Normalmente, a pessoa perversa é manipuladora, impulsiva, sedutora e se sente superior. Mentiras e transgressão das normas fazem parte da rotina e não há sentimentos de culpa. Os perversos desejam poder e podem adotar práticas sexuais entendidas como "desvios".

Antes de Freud estudar esse conceito, a palavra perversão era tida como algo pejorativo, doença, censura, como algo de desordem orgânica e anormal. A medicina da época tratou a perversão como uma forma de degeneração do sistema nervoso.

A sexualidade era vista somente como modo de reprodução, portanto, toda manifestação sexual que não tivesse o objetivo de reprodução, era vista como patológica, já que colocaria em risco a preservação da espécie e a procriação.

A partir de Freud (1905) a perversão adquire um aspecto diferente, tendo em vista que irá fazer parte da sexualidade infantil, que possui várias formas de obtenção de prazer.

Após as ideias de Freud, Freud institui uma distinção entre as inversões e as perversões. Para buscar prazer o ser humano pode ser condicionado a perverter os padrões morais da sociedade. Tal situação começa com a chamada “angustia da castração”, isto é, quando alguém é bloqueado por alguém na obtenção do prazer e para se defender da repressão, o agente cria um mecanismo de desvio da “angustia da castração”. Isto é, para satisfazer seu desejo de obter prazer e aliviar a dor de sua angustia o agente cria um atalho que é a perversão.

Freud trata da perversão como desvio da conduta sexual. Assim, toda criança, ao autossatisfazer-se sexualmente, poderia ser considerada perversa. O sujeito de estrutura perversa mantém-se, contudo, excluído do Complexo de Édipo e da alteridade, passando a satisfazer sua libido sexual consigo mesmo, sob caráter narcísico. Tal estrutura dá-se por meio de uma fixação num desejo irresistível e numa fixação compulsiva.

Alguns exemplos que podemos destacar na nossa sociedade: Gravidez na adolescência: A região com mais filhos de mães adolescentes é o Nordeste (180.072 – 32%), seguido da região Sudeste (179.213 – 32%). A região Norte vem em terceiro lugar com 81.427 (14%) nascidos vivos de mães entre 10 e 19 anos, seguido da região Sul (62.475 – 11%) e Centro Oeste (43.342 – 8%). Hoje há um estímulo compulsivo a busca do sexo o mais rápido possível, na fase da adolescência e infância.

Não há números oficiais do governo federal, dados da Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo acusam que as ocorrências de sífilis por transmissão sexual cresceram 603% em seis anos. Em outros estados, o panorama não é menos preocupante. Em 2013 e 2014, Acre, Pernambuco e Paraná registraram crescimento de 96,1%, 94,4% e 63,1%, respectivamente. Os casos de grávidas com a infecção pularam para mais de 1000%.

Há um estupro no Brasil a cada 11 minutos. Mais de 350 mil divórcios no Brasil. O alto índice dos Suicídios no Brasil, 11 mil pessoas em média tiraram a própria vida por ano. É a quarta maior causa de morte de brasileiros entre 15 e 29 anos, informam dados inéditos do Ministério da Saúde divulgados nesta quinta-feira (21). Entre 2011 e 2015, o número de suicídios cresceu 12%.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

O ABORTO NOS DOCUMENTOS DA IGREJA CATÓLICA


O ABORTO NOS DOCUMENTOS DA IGREJA CATÓLICA

 

A Igreja, nos seus documentos oficiais, é constante na condenação do aborto. O elemento central dessa argumentação é a defesa da vida, reiterada como um princípio absoluto, imutável e intangível. A existência de uma pessoa humana, sujeito de direitos, desde o primeiro momento da concepção é o pressuposto para se considerar a interrupção de uma gravidez como um ato homicida em qualquer momento da gestação e sob quaisquer condições. Assim, esses dois elementos – a sacralidade da vida humana e a condição de pessoa do embrião – fundam a condenação incondicional do aborto, integrando argumentos de ordem religiosa, moral e biológica.

 

EVOLUÇÃO DA DOUTRINA CATÓLICA SOBRE O ABORTO

 

O texto mais comumente invocado em favor da afirmação de que a condenação absoluta do aborto no cristianismo é parte de sua tradição mais antiga, é a Didaqué, a instrução dos doze apóstolos. Trata-se de um manual catequético, possivelmente escrito na Síria, no final do século I ou início do século II, para o ensino das verdades religiosas. É o mais antigo documento cristão depois do Novo Testamento. No entanto, mesmo em relação a esse documento, divergências podem ser encontradas. Discute-se a tradução feita do grego, afirmando que este não diz “Não matarás o filho no seio de sua mãe”, mas: “Não matarás o filho em ruínas”. Esta discussão não invalida a tradução até hoje divulgada, pois as “ruínas” pode ser uma criança com má formação somática, já que era habitual o infanticídio de crianças com deformidades físicas na antiguidade.

O estudo dos primeiros escritos cristãos – chamados padres da Igreja e dos teólogos dos séculos iniciais do cristianismo –, mostra um panorama bastante diversificado.

Os autores da Igreja primitiva condenavam o aborto como pecado grave, mas a condenação se referia a um feto cuja forma é completa e, por isso, possuidor de alma. Se o feto não estava animado, isto é, se ainda não lhe havia sido infundida uma alma, não havia assassinato.

O Concílio de Ancira, na Ásia Menor (hoje, Ancara), por exemplo, em 314, distingue a pena aplicada ao homicídio (pena de morte) da que é proposta para o aborto, reduzindo-a para dez anos de prisão. São Jerônimo, no século IV, reconhece que, até essa data, “não há doutrina oficial da Igreja sobre o tema da animação do feto. Isto significa que, para os teólogos da época, era perfeitamente válido assumir qualquer das duas hipóteses propostas”, isto é, da animação imediata ou tardia.

Em relação a Agostinho (354-430d.C.), é conhecida passagem do bispo de Hipona em favor da afirmação da distinção entre feto animado e não animado: “Se o que é (informater) informe, como uma espécie de ser vivo, uma coisa sem forma, então a lei do homicídio não se aplicará, pois não se pode dizer que haja uma alma viva no corpo que carece de sentidos, já que ainda não se formou (nondum formata) e não está dotado de sentidos”.

Vários estudiosos modernos, após analisar os comentários aos textos agostinianos, conclui: “Honesta e objetivamente não se pode afirmar que Santo Agostinho assegure como certo que existe pessoa humana desde o primeiro instante da concepção. O mais correto é ater-se ao que ele mesmo assegura: que não sabe sobre o assunto mais do que aquilo que propõe São Jerônimo. E já vimos que São Jerônimo coloca as diversas hipóteses debatidas à época, mas não toma partido por nenhuma delas, reconhecendo que não sabe quando sucede a animação”.

Nos textos da época, pode-se afirmar que o aborto é um pecado passível de punição, porque revela a intenção de ocultar a fornicação e o adultério. Era comum gravidezes fora do casamento serem interrompidos pelo aborto. Para Santo Agostinho, o problema do aborto é que, tal como o controle da natalidade, ele destrói a conexão necessária entre o ato conjugal e a procriação. Não se trata de um homicídio, mas de um pecado sexual.

A literatura penitencial iniciada na Igreja Celta, no século VI, tratou o aborto como uma falta séria, mas impôs penas diversificadas, segundo os costumes de cada lugar. Nesse catálogo de faltas e de penalidades, o aborto era tratado como um possível ato pecaminoso e, em geral, não estava entre os pecados mais graves. Faltas como a adivinhação, o suborno e o roubo recebiam, muitas vezes, penas mais severas.

Trabalhando com a hipótese da animação tardia, comum à época, os catálogos penitenciais estipulavam uma gama variada de castigos, sendo mais leve a pena quanto mais inicial era a gestação interrompida. A diversidade de penas indica, assim, o reconhecimento de uma diferença entre o fruto da concepção em seus primeiros estágios e no correr de seu desenvolvimento. O importante é “comprovar que não há unanimidade na Igreja primitiva sobre a interpretação do aborto em termos de homicídio. E que as correntes teológicas de tempos anteriores sobre a animação do feto refletem-se claramente na legislação penitencial eclesiástica, fazendo variar as penas devidas ao aborto”.

Ainda no período que antecede o século XV, podemos citar, o Decretum Gratiani (Decreto de Graciano), provavelmente de 1140 d.C., também chamado Cânon Aliquando, serviu de base para a elaboração de um código de leis eclesiásticas: o Corpus Iuris Canonici. Esse conjunto de leis proposto para toda a Igreja substituiu os penitenciais, de caráter local, e permaneceu em vigor por quase oito séculos. O Código de Direito Canônico só foi estabelecido em 1917 e o atual, em 1983. O Código de Graciano teve profunda influência sobre os procedimentos disciplinares na Igreja.

Também nesse código de leis o aborto nos primeiros estágios de desenvolvimento do feto não é considerado um homicídio. A penalidade canônica é prevista somente para o caso do feto animado. Essa distinção entre feto animado e não animado prevalecerá na legislação canônica por muitos séculos. Nesse período, dois papas adotam explicitamente, a posição de Graciano: Inocêncio III e o Papa Gregório IX, com suas Decretais, ambos do século XIII.

Deve-se notar também a posição de Santo Antonino (1389-1459), moralista dominicano e arcebispo de Florença. Além de manter a diferenciação já aludida, excluindo o caráter de homicídio do aborto praticado no início da gravidez, remete a decisão de recorrer ao aborto à consciência do médico, admitindo assim o aborto terapêutico para impedir que a mulher morra no momento do parto. No entanto, em caso de dúvida sobre a animação do feto, considera moralmente incorreto o recurso ao aborto.

Na Summa theologiae, III, tit.7, cap.2 , lê-se: Se o feto não está animado, ainda que o médico “impeça sua animação, não se produz a morte de nenhum ser humano, e se seguiria o bem de salvar a vida da mãe”.

Chega-se, finalmente, a São Tomás de Aquino (1225-1274), cujo pensamento teve influência decisiva no desenvolvimento doutrinal cristão. Na esteira da tradição antiga do cristianismo, Tomás de Aquino considera o aborto um mal moralmente condenável, mas não necessariamente um homicídio. Partindo de conceitos aristotélicos, Tomás de Aquino admitia um desenvolvimento progressivo do embrião através de etapas sucessivas.

Primeiro, a vida é informada por uma alma vegetativa, “quando o embrião vive como uma planta”; depois, esta “decai e surge uma alma mais perfeita, que é, ao mesmo tempo, vegetativa e sensitiva, quando o embrião vive uma vida animal”. Só então, o embrião recebe uma alma propriamente humana, racional e se torna um ser humano. Alma, no pensamento de Tomás de Aquino, refere-se ao princípio vital e atende à especificação de toda forma de vida.

Essa teoria filosófica de Tomás de Aquino, nomeada hilomorfismo, propõe que “a alma é a forma substancial do corpo, mas uma forma substancial só pode estar presente em uma matéria capaz de recebê-la. Assim, o óvulo fertilizado, ou o informater embrião não pode ter uma alma humana”.

A concepção holomórfica do ser humano implica em uma hominização tardia. Quer dizer, após a concepção, a passagem pelos sucessivos estágios até chegar à alma racional levaria 40 dias, no caso de um feto do sexo masculino, ou 80 dias, no caso de um feto do sexo feminino. Essa ideia de que a alma racional necessita de todo esse tempo para desenvolver-se levou-o a assumir, em relação ao aborto, a posição referida acima: embora condenável, não pode ser qualificado de homicídio quando levado a cabo no início da gestação.

Nos séculos XVI e XVII, desenvolvem-se novas concepções no campo da moral. Com base na ideia tomista do homicídio indireto, estabelece-se o conceito de aborto indireto, hoje tratado por aborto terapêutico. Admite-se que é moralmente válido administrar tratamento médico à mulher, ainda que isso venha a causar a morte do feto. Trata-se então de um efeito não procurado em si mesmo, mas provocado inevitavelmente como consequência da utilização de medidas terapêuticas legítimas na tentativa de salvar a mãe.

Muitos teólogos medievais defendem a legitimidade do recurso ao aborto quando a vida da gestante está ameaçada. Tratam essa situação como uma exceção à norma tradicional cristã de respeito ao ser humano em qualquer estágio de seu desenvolvimento. Sanchez, famoso teólogo moralista jesuíta, defende, no século XVI, que o aborto de um feto não animado é moralmente correto, não só no caso de perigo de morte para a mulher, mas também em casos de grave prejuízo. Seu argumento é que, nesse caso, não se está matando uma pessoa humana e, além disso, está se alcançando um grande benefício para a mulher. Essa posição permanece durante todo o século XVI, começando a modificar-se somente a partir do século XVII.

Durante os séculos XVIII e XIX, a divergência em torno da distinção entre aborto de feto formado e de feto não formado continua, ganhando força a corrente de pensamento que defende a infusão de uma alma racional no momento da concepção. Porém, ainda em 1713, estudando o problema do batismo de fetos abortados, a Sagrada Congregação da Inquisição Universal, depois chamada Santo Ofício (hoje, Congregação para a Doutrina da Fé), determina: “Se existe uma base para pensar que o feto é animado por uma alma racional, pode e deve ser batizado condicionalmente. No entanto, se não existe tal certeza, não deve ser batizado sob nenhuma circunstância”.

Finalmente, em 1869, o Papa Pio IX adota explicitamente a teoria da personalização imediata, condenando qualquer aborto e em qualquer estágio da gravidez, determinando pena de excomunhão a quem quer que o praticasse. Essa condenação absoluta do aborto, historicamente muito recente, mantém-se como posição oficial da Igreja até os dias atuais.

 

A LUTA DA IGREJA CONTRA O ABORTO E A DEFESA DA VIDA

 

A condenação da interrupção voluntária da gravidez funda-se numa proposição de fé, segundo a qual a vida humana tem caráter sagrado por ser um dom divino. Paulo VI, citando Pio XII, não deixa dúvidas: "Cada ser humano, também a criança no ventre materno, recebe o direito de vida imediatamente de Deus, não dos pais, nem de qualquer sociedade ou autoridade humana".

Atentar contra a vida é atentar contra o próprio Deus. Do direito à vida derivam todos os outros direitos, dos quais aquele é condição necessária. Assim, o mandamento divino: Não matarás refere-se à sacralidade da vida, que deve ser respeitada, por vontade divina, segundo um princípio abstrato, absoluto, universal e aplicável a todos os seres humanos. Uma vez que, segundo o magistério da Igreja, desde o primeiro momento da fecundação há uma pessoa humana completa, o aborto torna-se um ato moralmente inaceitável e condenável, verdadeiro homicídio, i.e., um atentado contra a vida e, consequentemente, contra Deus, criador da vida, um pecado gravíssimo.

O aborto é condenado por provocar a morte de um ser humano considerado inocente, o que constitui uma situação de tríplice injustiça: contra a soberania de Deus, único Senhor da vida; contra o próximo, que é privado do direito de existir como pessoa; e contra a sociedade, que perde um de seus membros. A inocência presumida do nascituro vem do fato de ser ele incapaz de ato moral. Considera-se, além disso, sua situação de ser indefeso incapaz de proteger-se de uma agressão.

O direito à vida apresenta-se como um direito ao mesmo tempo sagrado, natural e social. Ainda que a realização de um aborto possa conduzir ao alcance de certos bens, como a saúde ou a vida da mãe, ele é sempre injustificável. Outras razões, como as dificuldades que possa significar um filho a mais, especialmente se apresenta anomalias graves, a desonra, ou o desprestígio social, ainda que consideráveis, também não legitimam o ato abortivo: “deve-se sem dúvida afirmar que jamais alguma dessas razões possa conferir objetivamente o direito de se dispor da vida de alguém, mesmo em sua fase inicial”.

O respeito à vida humana tem ainda como referência a lei natural. Trata-se de um instinto humano a ser respeitado por crentes e não crentes: “Para quem acredita em Deus, isso é espontâneo e intuitivo e é obrigatório por lei religiosa e transcendente; e também para quem não tem essa dita de admitir a mão de Deus protetora e vingadora de todos os seres humanos, é e deve ser intuitivo, em virtude da dignidade humana, esse mesmo sentido do sagrado, isto é, da intangibilidade própria de uma existência humana vivente”. A invocação da lei natural é continuamente reiterada e coloca as bases para a proposição da universalidade dos princípios morais no campo da reprodução humana.

Os documentos do episcopado brasileiro seguem na mesma linha de argumentação dos papas e do Vaticano. Afirma-se a sacralidade da vida humana, dom de Deus, deduzindo-se daí a ilicitude de todo e qualquer ato abortivo. Em documento de 1984, a CNBB propõe: "Por ser supremo dom natural de Deus, toda vida humana deve ser preservada desde o primeiro instante da concepção, sustentada, valorizada e aprimorada. São inaceitáveis, como atentados contra a vida humana, o aborto diretamente provocado, o genocídio, o suicídio, a eutanásia, a tortura e a violência física, psicológica ou moral, assim como qualquer forma injusta de mutilação".

 

QUANDO SE INICIA A VIDA HUMANA PARA A IGREJA?

 

As intervenções da Igreja assumem como dado definitivo e inquestionável que, desde a concepção, há uma vida humana em gestação. Há a existência de uma pessoa humana desde o primeiro momento da fecundação. A ciência comprova a natureza totalmente humana e pessoal do embrião. Há o reconhecimento pelos cientistas de que desde o momento da fecundação existe uma realidade celular distinta do óvulo e do espermatozóide, o zigoto, que dispõe de código genético próprio e é, indiscutivelmente, vida humana.

O zigoto é uma pessoa humana, gozando de todos os direitos inerentes a ela. Isto porque, possuindo um código genético completo, o desenvolvimento do zigoto dá-se em um processo contínuo, sem interrupção e por autogestão, culminando na pessoa humana, mesmo ainda no ventre materno. Há uma outra corrente de caráter mais filosófico. Considera o zigoto como pessoa humana em potencial, mas equivalente – com o mesmo valor e os mesmos direitos – à pessoa humana em ato, isto é, o indivíduo nascido.

Para ambas as interpretações, a interrupção de um processo gestacional é considerado um ato homicida, seja porque tira a vida de uma pessoa humana, – o zigoto – seja porque eliminar uma vida potencial equivale à eliminação de uma vida em ato. O princípio moral que deve prevalecer é o de deixar agir a natureza seguindo seu curso normal, isto é, conduzindo, em um processo unívoco e contínuo, ao desenvolvimento de uma pessoa humana.

Vários episcopados retomam os argumentos científicos como fonte de legitimação de suas posições. Em 1971, aparecem declarações dos bispos americanos, holandeses e franceses. Em 1974, os bispos austríacos escrevem ao chanceler do país: “Os bispos viram suas posições reforçadas pelas opiniões de especialistas da medicina”. Também o episcopado alemão manifesta-se em 1974: “A biologia moderna estabeleceu sem contestação que não existe nenhum estágio pré-humano do embrião no seio materno”. A CNBB segue na mesma linha. Em documento datado de 1993, afirma: “Cientificamente, já não restam dúvidas: o feto, no ventre materno, distingue-se do corpo da própria mãe. É outro ser, é intocável”.

No entanto, o documento da Congregação para a Doutrina da Fé restringe o papel da ciência: “De resto, não pertence às ciências biológicas dar um juízo decisivo sobre questões propriamente filosóficas e morais, como são a do momento em que se constitui a pessoa humana e da legitimidade do aborto." A Igreja se coloca como instância de julgamento ético acima da ciência, chamando a si o direito de definir a moralidade da ação abortiva: "Ora, sob o ponto de vista moral, isto é certo, mesmo que porventura subsistisse uma dúvida concernente ao fato de o fruto da concepção já ser uma pessoa humana: é objetivamente um pecado grave ousar correr o risco de um homicídio. 'É já um homem aquele que o viria a ser'”.

Dos primórdios da Igreja, assim como os ensinamentos mais recentes de papas anteriores e do Concílio Vaticano II. A ideia repetida é a de que o aborto foi sempre condenado. Em 1973, diz Paulo VI: “Bem sabeis que a Igreja sempre condenou o aborto, o que os ensinamentos do nosso Predecessor de venerável memória Pio XII (...) e os do II Concílio Vaticano (...) não deixaram de confirmar, com a sua imutada e imutável doutrina moral”.

A Declaração sobre o Aborto Provocado, de 1974, inicia com a rememoração dessa condenação contínua: “Apoiada na Sagrada Escritura, a Tradição da Igreja considerou sempre que a vida humana deve ser protegida e favorecida desde o princípio, assim como nas diversas fases do seu desenvolvimento. Nessa perspectiva, a ilegitimidade do aborto provocado é um ensinamento constante e sem lacunas, que se pode encontrar nos padres da Igreja, nos teólogos da Idade Média, em diversos documentos do Magistério Episcopal e Pontifício. Todo aborto deve ser absolutamente excluído”. Nesta Declaração, reconhece-se a existência de opiniões divergentes e os fiéis são alertados para a distinção entre o que são opiniões novas e o que é a doutrina apresentada com autoridade pela Igreja: “(...) conta que todos os fiéis, incluindo mesmo aqueles que possam ter se sentido abalados pelas controvérsias e pelas opiniões novas, compreendam que não se trata de opor uma opinião a outra, mas sim de transmitir-lhes uma doutrina constante do Magistério supremo, que expõe a norma e os costumes, sob a luz da fé”.

            Não há direito da mulher ao próprio corpo, quando se refere ao nascituro. Só há direito quando a vida humana não está em jogo.

 

OUTRAS POSIÇÕES SOBRE O INÍCIO DA VIDA HUMANA

 

Em relação aos dados científicos, há uma concordância em torno da ideia de que eles não permitem afirmar com certeza a existência de uma pessoa humana desde os primeiros momentos da fecundação. Parece, ao contrário, mais provável que somente algum tempo após a concepção se possa admitir estar diante de uma pessoa humana em gestação. A argumentação aduzida em favor dessa concepção se baseia no fato de que não basta a existência de um código genético – o DNA – no zigoto para que se gere uma pessoa humana. Além disso, o desenvolvimento do zigoto não se dá em um processo contínuo, pois há mudanças qualitativas consideráveis no período embrionário. Nesse processo, entram em jogo inúmeros elementos, endógenos e exógenos, de maneira que não se pode argumentar que a pessoa está potencialmente no zigoto e que a passagem ao ato de tornar-se pessoa será automática.

Outro dado científico levantado é o de que a individuação se dá na segunda semana da gestação, no momento em que se dá a nidificação, ou fixação na matriz. Ora, se filosoficamente o que constitui a pessoa é o fato de que se trata de um indivíduo, uno e único, a fixação da individualidade não pode se dar antes da nidificação. O dado científico em favor dessa teoria é o de que, no caso da geração de gêmeos, a divisão do embrião em dois indivíduos ocorre somente após esse processo.

Pode-se ainda usar como argumento a ocorrência da perda extraordinária de zigotos antes da fixação do óvulo fecundado. Calcula-se que em torno de 75% dos zigotos são eliminados antes de se implantarem na matriz. Esse dado leva muitos estudiosos a se perguntarem se, de fato, a natureza eliminaria tantas pessoas ou se esse processo não estaria indicando, ao contrário, que não existem elementos estruturais no zigoto que permitam reconhecê-lo como tal.

Finalmente, o recurso à ciência leva à consideração do desenvolvimento da consciência humana como critério para o estabelecimento da existência ou não de uma pessoa humana. Seguindo Bernard Häring: “Desde Teilhard de Chardin se reconhece que a hominização ocorre pela emergência da consciência humana. (...) Quer dizer, reconhece-se que o especificamente humano se dá com o surgimento da consciência. Afirma-se que a realidade de transcendência que caracteriza o ser humano e o diferencia de outras espécies animais é precisamente a consciência. Mas não há possibilidade de consciência sem vida cerebral. Em outras palavras, a hominização de cada ser humano supõe a 'emergência' ou o surgimento de sua consciência”.

O substrato orgânico indispensável para que possa existir consciência é o cérebro. A célula geradora do córtex cerebral inicia seu desenvolvimento no 15º dia após a concepção e somente em torno da 8ª semana está suficientemente desenvolvido para que se possa detectar a atividade cerebral. Parece, assim, segundo esses dados biológicos que só se pode propor a existência de uma pessoa humana, a partir da existência do córtex cerebral, condição indispensável para que haja consciência humana.

Para mostrar a importância da consciência no estabelecimento da pessoa, alguns pesquisadores propõe a hipótese de que se transplantassem todos os órgãos de um indivíduo para um outro corpo: não haveria, nesse caso, um transplante de pessoa. Mas se se chegasse a transplantar o sistema cerebral de um corpo a outro, ocorreria certamente um transplante de pessoa.

Na bibliografia recolhida a respeito dessa discussão, encontra-se um número considerável de teólogos e outros especialistas católicos que propõem que não se pode falar de pessoa humana em relação ao fruto de uma concepção em seus primeiros estágios. Pesquisadores em um encontro na cidade de Bogotá propõe que somente após a 6ª ou 8ª semana se poderia admitir a existência de uma pessoa. Para ele, apenas um acordo ético, racional, estabelecido em um diálogo interdisciplinar pode chegar a definir o valor ético da realidade humana em desenvolvimento. Propõe a busca de um novo paradigma de valoração das realidades biológicas e de estabelecimento do que é ou não natural.

Paul Ladrière critica à encíclica Humane Vitae, de Paulo VI, nela o Papa enquadra todo o ser humano numa visão estritamente biologista. Através dessa encíclica o papa torna a biologia norma de moralidade. O fundamento da ética. Diz ele: nessa encíclica, "a mulher é submetida às leis biológicas que a marcam em seu corpo. Jamais a autoridade pontifícia havia ousado ir tão longe".

Na mesma linha, Ladrière, discuti a chamada lei natural, apresentada como expressão da vontade divina, perdendo-se de vista sua dimensão histórica. Além de referir o célebre biólogo Jaques Monod, para o qual não há indivíduo até o 5º ou 6º mês da gestação, quando se forma o sistema nervoso central, invoca outro cientista dessa área de estudo: Y.F. Jacob. Ele afirma que não há solução para o problema do início da vida, pois esta “não começa nunca, mas continua há cerca de 3 milhões de anos. Um espermatozóide isolado ou um óvulo não é menos vivo que um óvulo fecundado”.

O autor qualifica a vida humana. Únicos seres capazes de entrar em relação com o mundo e com outras pessoas. É a relação de reconhecimento dos pais que chamam o filho a nascer que "revela, se não instaura, o caráter humano do ser em gestação. É o humano, não a natureza, o que humaniza". Portanto, para o autor não é um contra senso o aborto.

Roqueplo, padre dominicano, também considera inadmissível que a biologia seja colocada como fundamento da ética, ainda que a ciência nos ensine muito. Thibault distingue um óvulo fecundado de uma pessoa humana. “Fecundar um óvulo é relativamente fácil, seja in vitro, seja 'ao vivo': exige apenas alguns segundos; enquanto que fazer uma pessoa exige pelo menos 20 anos”.

Ela questiona se a questão do respeito ao óvulo fecundado não seria uma fuga dos verdadeiros e graves problemas colocados pela fabricação de um ser humano. Thibault faz a seguinte observação: “conforme meu ponto de vista, é preciso considerar que são, muitas vezes, as exigências da fabricação de uma verdadeira pessoa humana que levam à obrigação de sacrificar um certo número de óvulos fecundados, tenham sido eles fecundados artificialmente ou naturalmente”.

As proposições de Roqueplo e Ladrière, como as de Thibault e outros, constituem o que alguns chamam de a posição francesa. Caracteriza-se por ser das mais radicais, em termos da compreensão das relações entre definição do que é propriamente humano e determinações biológicas.

Em sua apreciação da chamada posição francesa, Anjos julga que, embora seja discutível do ponto de vista argumentativo propor que a identidade pessoal do nascituro dependa da aceitação de terceiros, a consideração das consequências de uma gravidez não deve ser dispensada na argumentação moral sobre o aborto.

Outra consideração do autor refere-se à incerteza quanto ao momento em que, após a concepção, se pode falar da existência de uma pessoa humana. Como estabelecer normas morais operativas quando se apresentam motivos para se interromper uma gravidez? Anjos discute o argumento segundo o qual no embrião há um "gérmen de vida", indicador da "intenção de Deus de ali suscitar uma pessoa humana", concluindo-se daí uma norma proibitiva do aborto.

 

CRÍTICAS À POSIÇÃO DA IGREJA

 

1ª Crítica:

Teologicamente, a defesa incondicional da vida é colocada pela fórmula “só Deus é o Senhor da vida”. Já a abordagem de caráter filosófico invoca o direito à vida, alicerçado na perspectiva da lei natural.

Retira-se assim das pessoas a responsabilidade sobre o cuidado devido à vida humana. Além disso, embora se possa aceitar como teologicamente correto que “Deus é a fonte última do direito à vida, isto não resolve o problema de 'como' os seres humanos devem respeitar esse direito ou como enfrentar um conflito de direitos”. Na decisão pela interrupção de uma gravidez, entram em jogo outros importantes direitos a serem respeitados. Não se pode, a priori, defender a primazia do direito à vida sobre todos os outros direitos humanos: o direito de sobreviver, o direito de uma vida digna etc.

 

2ª Crítica:

 

Outro problema colocado é o antropomorfismo teológico. De acordo com essa compreensão, há um envolvimento direto e imediato de Deus na causalidade humana. Isso significa que a divindade é o agente que atua diretamente no mundo e na vida das pessoas. Deus é o único responsável pela vida ou morte de alguém. As nossas responsabilidades de decisão, muitas vezes angustiantes, são transferidas para Deus. Será que Deus é responsável por todas as pessoas que morrem de morte violenta? A glória de Deus se manifesta no agir livre e racional do homem.

 

3ª Crítica:

 

A ideia do domínio de Deus sobre a vida conduz à proposição de que não é lícito, sob hipótese alguma, “tirar diretamente a vida de um ser humano inocente”. No entanto, especialistas católicos em teologia e moral discutem os termos dessa proposição. McCormick coloca a seguinte questão: “Por que somente a morte diretamente provocada de um inocente é considerada moralmente errada? Por que tal julgamento não vale para qualquer assassinato?” Para ele, a única resposta possível é que “em alguma situações de conflito (p.ex. autodefesa, guerra), matar pode significar a melhor maneira de defender a vida mesma”. Tal conclusão assenta-se sobre uma avaliação dos efeitos de duas alternativas possíveis. Julga-se o que aconteceria se alguns homicídios não fossem permitidos. A proteção da ordem pública, no caso da guerra e da pena de morte, e a proteção da própria vida, no caso da legítima defesa, justificam a exceção à regra de que não se pode matar, porque as alternativas, nos casos em questão, significariam uma multiplicação de violações humanas, infrações e perda de vidas. Isto é, a alternativa à permissão de matar seria “a vitória do pecado e sua gradual extensão, com perda crescente de vida". Por isso, "por mais lamentável que seja, se tirar uma vida é o único meio efetivo (de defendê-la), torna-se aceitável fazê-lo”.

Note-se assim que não matar é um princípio moral formal, do qual deriva a aplicação: não matar diretamente um inocente. A crítica relativa à absolutização do princípio de defesa da vida respalda-se ainda no fato de que a mesma Igreja admite, tradicionalmente, algumas exceções que põem em jogo a pretendida incondicionalidade. Reconhece-se, na argumentação tradicional, o aborto indireto, no qual se tira uma vida humana. Também é moralmente justificado, no discurso oficial, o homicídio, nos casos de legítima defesa, da guerra justa e da pena de morte.

O argumento segundo o qual, no caso do aborto, essa absolutização teria validade porque se trata da vida de um ser inocente, na verdade não se aplica. “Tratando-se de um valor primordial e fundamental, deveria valer para todos, inocentes ou não, se, de fato, fosse um absoluto”.

 

 

CRÍTICAS AO POSICIONAMENTO UNILATERAL DA IGREJA

 

No discurso oficial católico é recorrente a acusação de imoralidade ou de amoralidade, lançada à sociedade moderna. O laxismo, o hedonismo, a busca individualista do prazer são consideradas marcas características das sociedades contemporâneas. Assim, o aborto seria a expressão de uma sociedade incapaz de acolher as crianças.

Pohier, sacerdote católico, discute a afirmação eclesial da degradação da mentalidade atual, no que diz respeito ao tratamento da infância, comparativamente ao que ocorreu em tempos anteriores. Ele argumenta que, ao contrário, as sociedades contemporâneas demonstram maior acolhida e atenção às crianças. Nossa sociedade, diz ele, apesar de suas falhas, muitas vezes radicais, coloca fortes exigências aos pais, à família e a outros grupos sociais em relação a seus deveres para com a infância, prevendo mesmo punições para os casos de desrespeito às normas estabelecidas nesse campo. Para ele, o problema, na verdade, não é a discussão sobre o quanto é ou não suficientemente boa a sociedade. Quando a Igreja coloca assim o problema, ela falseia os dados da questão, tornando problemática sua forma de argumentar.

Ainda em relação ao julgamento negativo que faz a Igreja sobre quem se recusa a aceitar que o aborto seja sempre, e em qualquer circunstância, uma falta grave e um sinal de imoralidade, Pohier reage: “Digo apenas que pessoalmente, me é impossível taxar globalmente os corpos médicos suíços, americanos, russos, ingleses, tunisianos, japoneses, iugoslavos, suecos etc, taxar as instâncias mais oficiais destes corpos médicos e a maior parte de seus membros de imoralidade, porque eles não consideram o aborto sempre contrário à ética médica ou à ética geral. É totalmente impossível, para mim, taxar globalmente de imoralidade, a priori, todas as sociedades que elaboraram legislações em que o aborto não é forçosamente um delito ou um crime. (...) Como cristão, é-me impossível pretender que as Igrejas anglicanas da Inglaterra, do Canadá, dos Estados Unidos, que as Igrejas protestantes da Suíça, da Suécia e de outros países, nada compreenderam do Evangelho porque elas consideram que o aborto não é forçosamente e sempre um pecado que se deve evitar a todo o custo. Não digo que é bem porque elas dizem que é bem. Digo somente que não tenho o direito de agir como se não houvesse senão pessoas imorais, grupos imorais, sociedades imorais que pensassem assim e que o problema é mal colocado se começa por apresentá-lo dessa forma”.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

1. Ribeiro, L. In: Alternativas escassas: saúde, sexualidade e reprodução na América Latina. Fundação Carlos Chagas, Editora 34. 1994.

2. Rosado, M. J. In: Alternativas escassas: saúde, sexualidade e reprodução na América Latina. Fundação Carlos Chagas, Editora 34. 1994.

3. Isambert, F.A. In: Contraception et avortement, dix ans de débat dans la presse (1965 – 1974). Paris, Editions du CNRS, 1979.

4. Papa Paulo VI. In: Sedoc. Petrópolis, Vozes, pp.1034-1036. 1973

5. Anjos, M. F. In: Da argumentação sobre a moralidade do aborto ao modo justo de se argumentar em teologia moral. SP, Loyola. 1976.

6. Papa Paulo VI. In: Sedoc. Petrópolis, Vozes, pp.833-839.1977.

7. CNBB. Ata nº 10 da 22ª Assembleia Geral da CNBB (25.04-04.05.84) sobre a defesa da vida, Comunicado Mensal da CNBB, 1984.

8. CNBB. "A despenalização do aborto". Votação 7 da 31ª Assembleia Geral da CNBB, Comunicado Mensal da CNBB. 1993.

9. Separe, F.C.; Hamer, J. Apresentação da Declaração sobre o Aborto Provocado, Declaração da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, Comunicado Mensal da CNBB. 1974.

10. Guillemain, B. In: Encyclopaedia Universalis, corpus 14, Paris, Encyclopaedia Universalis, pp.1185-1187. 1985.

11. Cross, F.L.; Livingstone, E.A. In: The Oxford Dictionary of the Christian Church. Oxford University Press. 1997.

12. Melo, G. "Problemática religiosa de la mujer que aborta". Encuentro de investigadores sobre aborto inducido en América Latina Y el Caribe, Santafé de Bogotá, Universidad Externado de Colombia. 1994.

13. Hurst, J.; Muraro, R.M. In: Uma história não contada. Montevideo, Católicas por el Derecho a Decidir, pp.7-40. 1992.

14. Wijwickrema, S. In: Seminar on socio-cultural aspects of population. 1996. Boletins Fêmea, Editado pelo Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA). Brasília – DF, no.55, agosto/97, no.56, setembro/97, no.57, outubro/1997.

15. Stefen, L. Abortion (A reader). The Pilgrim Library of Ethics. 1996.

16. P. Ladrière. In: Opression des femmes et religion. Colloque de l'Association Française de Sociologie Religiouse (1-2/12/80), Centre d'Études Sociologiques, CNRS, Travaux et Documents, Societé des Amis du Centre d'Études Sociologiques, Paris, 1980.

17. Ladrière, P. "Ética y poder religioso em el campo de la reproducción de la vida humana", in Selecciones de teologia, n.98, vol.25, abril-junho, p.119-128, 1986.

18. D. Callahan. In: Lloyd, Steffen. Abortion, a reader. The Pilgrim Press, pP.82-93. 1996.

19. McCormick, R.A. The critical calling. Reflections on moral dilemmas since Vatican II. Georgetown University Press. 1989.

20. Catecismo da Igreja Católica. Rio de Janeiro, Editora Vozes. 1993.

 

sexta-feira, 20 de maio de 2016


O Diaconato Feminino na Igreja Católica

 

No dia 12 de maio de 2016 o Papa Francisco afirmou que pode promover um estudo sobre o diaconato feminino na Igreja primitiva. Mencionou o tema durante a audiência com a União Internacional de Superioras Gerais (UISG) no Vaticano. O tema não é novo e foi proposto uma vez mais em tempos recentes.

João Paulo II respondeu em 1994 à abertura anglicana com a carta “Ordinatio sacerdotalis” e negou categoricamente a possibilidade do sacerdócio feminino na Igreja Católica. E este documento deve ser entendido como uma definição “ex-cathedra”, isto é, infalível, como o exprimiu a Congregação para a doutrina da fé, no mesmo ano de 1994. O Cardeal Carlo Maria Martini foi quem falou da possibilidade de estudar a instrução do diaconato para as mulheres, que não menciona no documento papal.

O então Arcebispo de Milão disse: “Na história da Igreja existiram as diaconisas, por isso podemos pensar nesta possibilidade”. Alguns historiadores da Igreja antiga sublinharam que as mulheres eram admitidas em um especial serviço diaconal da caridade que se diferencia do diaconato atual, entendido como o primeiro grau do sacerdócio.

No encontro com o Papa foram trocadas perguntas e respostas, perguntaram ao Papa por que a Igreja exclui as mulheres para servir como diáconos. As religiosas explicaram ao Pontífice que as mulheres serviam como diaconisas na Igreja primitiva e lhe perguntaram: “Por que não constituímos uma comissão oficial que possa estudar a questão?”. O Pontífice respondeu que já havia falado alguma vez há alguns anos acerca deste tema “com um professor bom e sábio”, que tinha estudado o papel das diaconisas nos primeiros séculos da Igreja. Francisco havia explicado que ainda não estava claro o papel que tiveram tais diaconisas. “O que eram estes diaconatos femininos?”, recordou o Papa ter perguntado ao professor. “Havia ordenação ou não?”. “Era um pouco obscuro”, disse. “Qual era o papel da diaconisa naquele tempo?”; “Devemos constituir uma comissão oficial que possa estudar a questão?”, perguntou o Papa em voz alta. “Acredito que sim. Seria pelo bem da Igreja esclarecer este ponto. Estou de acordo. Falarei para que seja feito algo a respeito”. “Aceito”, disse o Papa em seguida. “Seria útil ter uma comissão que esclareça bem este assunto”.

Segundo uma tradição antiquíssima, o diaconato estava relacionado “não ao sacerdócio, mas ao ministério”. Existem alguns testemunhos da história sobre a presença das diaconisas, tanto na Igreja ocidental como na oriental. Os testemunhos se referem também aos ritos litúrgicos de ordenação. O ponto que deveria ser aprofundado é que tipo de figura ministerial tinham, quais eram as funções que desenvolviam na comunidade. A posição do magistério considera o diaconato como o terceiro grau do sagramento da ordem e o reserva somente aos homens, assim como os dois graus sucessivos, o presbiterado e o episcopado.

Ao estar de acordo em instituir uma comissão de estudo sobre o diaconato feminino na Igreja primitiva, o Papa Francisco quer verificar e ver como atualizar aquela forma de serviço, consciente de que as diaconisas permanentes podem representar “uma possibilidade atual”. No começo do cristianismo existia uma diaconia feminina (a qual menciona São Paulo) e foi documentado que no século III, na Síria, existiam as diaconisas que ajudavam ao sacerdote no batismo das mulheres. Um papel que se recolhe nas Constituições apostólicas do século IV, as quais se referem a um tipo de rito de consagração, entretanto este era distinto da diaconia masculina.

Algumas formas de serviço de diaconia feminina foram institucionalizadas há certo tempo, por exemplo na diocese de Pádua (Itália) por iniciativa do então bispo Antonio Mattiazzo. Trata-se de mulheres que, apesar de não vestir hábito religioso, emitiam votos de obediência, pobreza e castidade. Elas se consagraram como “colaboradoras apostólicas diocesanas”.

O papel e serviços desta nova forma de serviço se explicaram em seu tempo na diocese: “É uma forma de diaconia feminina inspirada no Evangelho. As colaboradoras apostólicas assumem a diaconia apostólica como projeto de vida acolhido, provado e orientado por parte do bispo”. Entre os serviços estão chamadas ao anúncio da Palavra, a educação na fé, as obras de caridade ao serviço dos pobres, a distribuição da comunhão, a animação da liturgia ou a gestão das estruturas como escolas e institutos.

O Papa Francisco falou mais de uma vez a respeito da necessidade para a Igreja Católica de valorizar o papel da mulher, mas sempre evitou apresentar esta valorização como uma forma de “clericalizar” as mulheres. “É algo que não sei de onde saiu – disse em dezembro de 2013, na entrevista com ‘La Stampa’ devido a declarações sobre mulheres cardeais – as mulheres na Igreja devem estar valorizadas, não ‘clericalizadas’. Quem pensa em mulheres cardeais sofre um pouco de clericalismo”.

Em setembro de 2001, o então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Joseph Ratizinger, junto com os cardeais Medina Estévez, (Prefeito do Culto Divino) e Castrillón Hoyos (Prefeito para o Clero) assinaram uma breve carta, aprovada pelo Papa João Paulo II, por meio da qual afirmavam que “não é lícito pôr em ato iniciativas que em qualquer modo pretendam preparar candidatas à ordem sacerdotal”. O texto se referia à ordem diaconal como sacramento e primeiro grau do sacerdócio.

Novos estudos sobre o diaconato feminino na igreja dos primeiros séculos, seu papel e deveres confrontados com o diaconato masculino, poderiam abrir novas possibilidades e novas formas de serviço consagrado além das ordens religiosas femininas já existentes.

“A Igreja necessita que as mulheres entrem no processo de tomada de decisões. Também que possam guiar um departamento no Vaticano”, afirmou o Papa Francisco respondendo seis perguntas que lhe fizeram durante o encontro com 900 religiosas do mundo inteiro.

Na Sala Nervi, explicou que “a Igreja deve incluir as consagradas e leigas na consulta, mas também nas decisões, porque necessitamos seu ponto de vista. E este papel crescente das mulheres na Igreja não é feminismo, mas corresponsabilidade e um direito de todos os batizados: homens e mulheres”.

São Paulo e antigos documentos da Igreja referem-se a diaconisas. Eram mulheres de conduta irrepreensível chamadas a participar dos serviços que a Igreja prestava a pessoas do sexo feminino, principalmente por ocasião do Batismo (ministrado por imersão). Recebiam o seu ministério pela imposição das mãos do Bispo, que não conferia caráter sacramental. – Com a rarefação do Batismo de adultos, foi-se extinguindo a figura da diaconisa na Igreja a partir do século VI.

 

Fundamentação bíblica

 

É São Paulo quem se refere às diaconisas em três passagens:

1) Rm 16, 1: O Apóstolo está em Corinto, onde escreve uma carta que a diaconisa Febe da vizinha cidade de Cencréia deverá levar a Roma. Recomenda-a nestes termos: “Recomendo-vos Febe, nossa irmã, diaconisa da igreja de Cencréia, para que a recebais no Senhor de modo digno, como convém a santos e lhe assistais em tudo de que precisar, porque também ela ajudou a muitos, a mim inclusive”. O Apóstolo não fornece indicação alguma sobre o ministério diaconal de Febe.

2) 1Tm 3,11: “Também as mulheres devem ser respeitáveis, não maledicentes, sóbrias, fiéis em todas as coisas”. O contexto mostra que São Paulo não fala das mulheres em geral mas da categoria das diaconisas, que vêm a propósito na exortação dirigida aos diáconos Há quem prefira dizer que se trata aí das esposas dos diáconos – o que parece pouco provável, pois em tal caso o Apóstolo teria escrito: “As suas esposas…”

 3) 1Tm 5, 9-11: “Uma mulher só será inscrita na categoria das viúvas com não menos de sessenta anos, se tiver sido esposa de um só marido, se tiver em seu favor o testemunho de suas boas obras, criado os filhos, sido hospitaleira, lavado os pés dos santos, socorrido os atribulados, aplicada a toda obra boa. Rejeita as viúvas mais jovens; quando os seus desejos se afastam do Cristo, querem casar-se, tornando-se censuráveis por terem rompido o seu primeiro compromisso”.

 Pergunta-se se tais viúvas eram diaconisas. A resposta mais provável distingue-as; ao lado das diaconisas (para as quais não havia limite de idade), estariam viúvas de boa conduta auxiliando a Igreja em funções diversas. Na tradição encontram-se as duas interpretações: ora viúvas e diaconisas são identificadas entre si, ora distintas umas das outras, sendo mais frequente esta última sentença.

Lê-se nas Constituições Apostólicas VI 17, obra datada do século IV: “Seja assumida como diaconisa uma virgem pura ou ao menos uma viúva fiel honrada, que se tenha casado uma só vez”. Ao passo que a diaconisa é instituída pela imposição das mãos, tal gesto não se aplica às viúvas; cf. ibid. VIII 24.

O apócrifo Testamento de Nosso Senhor Jesus Cristo também distingue as diaconisas das viúvas: estas recebem a bênção d Bispo e as incumbências de louvar a Deus nos sábados e domingos, nas festas da Epifania, da Páscoa e Pentecostes, instruir as catecúmenas, visitar as enfermas, ungir as mulheres por ocasião do seu Batismo. – Para as diaconisas, resta como principal função levar a S. Eucaristia aos enfermos.

 

Tradição Apostólica

 

O mais antigo testemunho é o de Plínio o Jovem, governador da Bitínia (Ásia Menor), que, tendo recebido a ordem de prender os cristãos em 112 escrevia ao imperador Trajano ter submetido à tortura duas cristãs honradas com o título de ministras (ministrae).

Cinquenta anos mais tarde terá escrito o Papa Sotero (166-175) aos Bispos da Itália escreve: “Foi comunicado a esta Sé Apostólica que algumas mulheres consagradas a Deus e religiosas tomam a liberdade, nas vossas regiões, de tocar nos vasos sagrados e nas santas palas e de incensar o altar ao redor. Tal prática abusiva e digna de censura merece a rejeição de todo homem sábio. Consequentemente, no exercício da autoridade desta Santa Sé ordenamos que essas coisas sejam radicalmente supressas dentro de um prazo mínimo e, a fim de que não se repitam, mandamos que quanto antes sejam banidas das vossas províncias” (citado pelo pseudo-Isidoro, Coletânea de leis do século IV).

 

O diaconato feminino era Sacramento?

 

Para responder a tal pergunta, examinaremos a prece de investidura de uma diaconisa conforme as Constituições Apostólicas VIII 19s: “Bispo, tu lhe imporás as mãos com a assistência do presbítero, dos diáconos e das diaconisas e dirás: Deus eterno, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, Criador do homem e da mulher, Vós que enchestes com vosso espírito Maria, Débora, Ana e Holda, Vós que não quisestes deixar de fazer que o vosso Filho único nascesse de uma mulher, Vós que no tabernáculo da Aliança e no templo estabelecestes mulheres como  guardiãs de vossas santas portas, lançai agora um olhar sobre vossa serva que aqui está, destinada ao diaconato. Dai-lhe o Espírito Santo, purificai-a de toda mancha corporal e espiritual, a fim de que exerça dignamente o ofício que lhe será confiado, para a glória vossa e o louvor do vosso Cristo com o qual e com o Espírito Santo Vos seja dada toda honra e adoração, santamente pelos séculos sem fim”.

 Neste texto é importante a referência à imposição das mãos. Esta vem a ser um gesto polivalente, podendo significar transmissão de graça, de faculdades, de saúde, de bênção… ou a investidura de uma diaconisa; não tem valor sacramental neste caso, pois nunca na Liturgia e no Direito antigos a diaconisa foi equiparada ao diácono; a contrário sempre lhe foram vedadas as funções do diácono e do presbítero, apesar das investidas para exercê-las.

Observa S. Epifânio (+ 403):

“Se no Novo Testamento as mulheres fossem chamadas a exercer o sacerdócio ou algum outro ministério canônico, a Maria deveria ter sido confiado, em primeiro lugar, o ministério sacerdotal; Deus, porém, dispôs as coisas diversamente; não lhe conferiu nem mesmo a faculdade de batizar. Quanto à categoria das diaconisas, existente na Igreja, não foi destinada a cumprir funções sacerdotais ou outras similares. As diaconisas são chamadas a salvaguardar a decência que se impõem no tocante ao sexo feminino, seja cooperando na administração do sacramento do Batismo, seja examinando as mulheres afetadas por alguma enfermidade ou vítimas de violência, seja intervindo todas as vezes que se trate de descobrir o corpo de outras mulheres a fim de que o desnudamento não seja exposto aos olhares dos homens que executam as santas cerimônias, mas seja considerado unicamente pelo olhar das diaconisas” (Panarion LXXIX 3).

 Como se vê, S. Epifânio, representando a tradição, vê nas diaconisas auxiliares no trato pastoral das mulheres. Tal ministério fica portanto claramente distinto do ministério dos diáconos.

Ademais é de notar: o próprio São Paulo estima e recomenda a diaconisa Febe (Rm 16, 1), mas não queria que a mulher falasse em público na igreja (o que é incompatível com o diaconato propriamente dito). Ver 1Cor 14, 34s: “Como acontece em todas as assembleias dos Santos estejam caladas as mulheres na Igreja, pois não lhes é permitido tomar a palavra. Devem ficar submissas como diz também a Lei. Se desejam instruir-se sobre algum ponto, interroguem os maridos em casa; não é conveniente que uma mulher fale nas assembleias”. São Paulo escreve isso num contexto matriarcal como Corinto, que tinha como padroeira a cidade a deusa grega Afrodite. São Paulo vai de encontro a cultura em que é o Pastor.

 Em 1Tm 2, 11s volta a advertência: “Durante a instrução a mulher conserve o silêncio com toda submissão. Não permito que a mulher ensine ou domine o homem”. Quem escreveu tais sentenças, não teria tolerado ver uma diaconisa pregar o Evangelho. Não há dúvida, as restrições feitas pelo Apóstolo às mulheres são a expressão de uma cultura já ultrapassada; hoje em dia não têm mais vigência; como quer que seja, contribuem para corroborar a interpretação que vê, antes do mais, nas diaconisas colaboradoras no serviço pastoral às mulheres.

Nem por isto a mulher é menos apreciada do que o homem por parte da Igreja. Tenham-se em vista as palavras do Papa João Paulo II em sua Carta Apostólica sobre a Dignidade da Mulher nº 26s:

“É de notar que Cristo só chamou homens para serem seus Apóstolos. Fazendo isto, o Senhor agiu de maneira livre e soberana; não se creia que Jesus, assim procedendo tenha apenas procurado conformar-se à mentalidade discriminatória dominante em sua época; Ele não fazia acepção de pessoas (cf. Mt 22, 16). Em consequência somente os doze Apóstolos receberam o mandato: “Fazei isto em memória de mim” (Lc 22, 19; 1Cor 11, 24). Somente eles na tarde da Ressurreição receberam o Espírito Santo para perdoar os pecados (cf. Jô 20, 22s). Daí se pode deduzir que o sacramento da Ordem, que perpetua a ação redentora de Cristo mediante seus ministros, é destinado aos homens apenas, como aliás já observou a Congregação para a Doutrina da Fé na Declaração Inter Insigniores de 15/10/76.

Em contra posição há uma posição revolucionária de Jesus em relação as mulheres de sua época. Ninguém, com sua vida e ensinamentos, impactou tanto a história de uma maneira tão intensa quanto Jesus. O que Ele ensinou e o que fez alterou o curso da história e dramaticamente mudou e continua mudando milhões de vidas ao redor do mundo. Seus ensinamentos têm afetado cada aspecto da vida – religião, educação, trabalho, ética, saúde, justiça social, desenvolvimento econômico e as muitas artes e ciências do viver humano.

Uma faceta da missão de Jesus que é menos conhecida, mas digna de ser recapitulada, é Sua atitude para com as mulheres. Isto é particularmente importante à luz de como o mundo na época de Jesus tratava as mulheres. Romanos e gregos, judeus e gentios, davam às mulheres nada mais que a segunda classe, como se elas fossem prestativas ferramentas em uma sociedade de domínio machista – cozinhar, dar à luz e criar as crianças e desempenhar qualquer função que lhes estivesse designada dentro das paredes de sua casa. Casos individuais de liderança e valentia se destacam em vários lugares, mas muitas mulheres estavam sob o domínio dos homens. Elas eram consideradas uma propriedade, transferida de pai para marido.

Em um mundo como aquele, Jesus veio e abriu novas perspectivas de igualdade e dignidade humanas. Ele se opôs às tradições e procurou direcionar os homens e as mulheres de volta ao plano original de Deus para a humanidade.

As sinagogas do primeiro século mantêm registros somente de homens. Homens e meninos podiam entrar nas sinagogas para adorar, mas para as mulheres e meninas havia uma divisória separada onde era permitido que elas se sentassem.

A tradição Judaica afirmava que as mulheres não tinham direito à salvação por seus próprios méritos. A única esperança de salvação era se unir a um devoto homem judeu. As prostitutas eram excluídas porque não tinham esse vínculo, e viúvas precisavam ter sido casadas com um judeu piedoso para ter esse privilégio.

Na sociedade Judaica, um homem era proibido de falar com uma mulher em lugares públicos. Um rabino deveria ignorar uma mulher em público, mesmo se ela pacientemente persistisse em busca de algum urgente conselho espiritual. Em um enterro, as mulheres caminhavam à frente do caixão. Elas eram consideradas responsáveis pelo pecado e, por isso, encabeçavam a procissão, levando a culpa pelo que havia acontecido. Os homens, não se sentindo responsáveis, caminhavam atrás do corpo.

As mulheres eram consideradas cerimonial e socialmente impuras durante seu período menstrual. Durante sua menstruação, elas eram isoladas. Até mesmo aos membros da família não era permitido chegar perto para não serem contaminados. Aos olhos da sociedade, o valor de uma mulher estava vinculado a sua habilidade de dar à luz. A esterilidade era um estigma social terrível. A responsabilidade da mulher era dar à luz bebês do sexo masculino que perpetuariam, desta maneira, o nome do pai.

Era privilégio do homem iniciar um processo de divórcio, o qual ele podia exercer baseado em considerações que hoje parecem frívolas e dignas de riso. A palavra de uma mulher, num tribunal, precisava ser confirmada pelo menos por três homens, de outro modo, não tinha valor. Não era permitido à mulher entrar em uma sinagoga para estudar; era considerado perda de tempo. Não era permitido que as mulheres se aproximassem do Lugar Sagrado no templo. Na época de Jesus, havia um pátio no templo para as mulheres, localizado fora dos recintos reservados para sacerdotes e outros homens, e uns 15 degraus abaixo, que indicava a posição subordinada da mulher.

            É emblemático a oração de um Judeu: “Eu te louvo e agradeço Senhor Deus de Israel, por não ter nascido mulher...” Como se vê, a sociedade de Jesus é preconceituosa, machista e patriarcal, não dando nenhum espaço às mulheres (Joachim Jeremias. Jerusalén en Tiempos de Jesús: Estudio Económico y Social del Mundo del Nuevo Testamento. Madrid: Cristiandad, 1977. p. 97s).


Jesus não começou uma revolução aberta contra o sistema que colocava as mulheres em uma posição subordinada. Todavia, Sua vida fez um manifesto. “Não encontramos em nenhuma de suas ações, seus sermões ou suas parábolas nenhuma depreciação referente às mulheres, tais como podemos facilmente encontrar em qualquer de seus contemporâneos.” (Marga Muñiz. Femenino Plural: Lãs Mujeres en la Exégesis Bíblica. Barcelona: Clie, 2000. p.183).

Considere alguns exemplos de como Jesus relacionou-Se com as mulheres. Jesus convidou as mulheres para serem Suas discípulas. Contrariando as expectativas contemporâneas, Jesus deu as boas-vindas às mulheres em seu círculo íntimo de discipulado (Lc 8, 1-3). Esta atitude contradisse as especulações rabínicas. As mulheres que seguiram a Cristo desprezaram os postulados da época. Elas se tornaram cuidadosas administradoras de seus recursos e apoiaram a missão de Cristo em momentos críticos (Lc 8,13). “Uma coisa era as mulheres serem desobrigadas de aprender o Torah e proibidas de associar-se com um rabino, outra totalmente diferente era viajarem com um rabino e se responsabilizarem pelos assuntos financeiros” Elas fizeram isso, revolucionando os padrões da época (Alcion Westphal Wilson. “Los discípulos olvidados: La habilitación del amor vs. el amor al poder”, en Bienvenida a la mesap. Langley Park, Maryland: TEAMPress,1998. p.185).

Jesus aceitou a hospitalidade das mulheres e ensinou-as. O mais importante exemplo é aquele da associação com Maria, Marta e Lázaro. O Mestre encontrou descanso e companheirismo na casa deles (Lc 10,38-42). Enquanto um rabino judeu quase não olhava para uma mulher, Jesus não hesitou em falar com Maria e Marta em público ou em ensinar-lhes as grandes verdades sobre a morte e ressurreição (Jo 11).

Para Jesus, mulheres e homens eram igualmente importantes quando se tratava de ensinar sobre as boas-novas de Seu reino. Na época em que foi dito “é melhor queimar as palavras do Torah que confiá-las ao cuidado de uma mulher”, Jesus indicou que entre as escolhas abertas às mulheres, Maria “escolheu a boa parte, e esta não lhe será tirada” (Lc 10,42). Desta forma, mostrou que a educação não era para ser um monopólio dos homens e que as mulheres também tinham o direito de aproveitarem as oportunidades para se educarem.

Outro exemplo da atitude diferente de Jesus para com as mulheres foi a revelação de Sua Missão a uma mulher. Na mais longa conversa registrada nos Evangelhos, Jesus revelou à mulher no poço samaritano (Jo 4,4-42) algumas das mais profundas doutrinas do reino: a natureza do pecado, o significado da verdadeira adoração, a disponibilidade de perdão para aqueles que se arrependem, a igualdade de todos os seres humanos independentemente de serem judeus ou samaritanos. Assim, em uma simples conversa no poço samaritano, Jesus rompeu dois preconceitos: de gênero e de raça.

Jesus reconheceu que à vista de Deus a família de Abraão inclui filhos e filhas. Ao curar a mulher incapacitada por 18 anos, Jesus colocou Suas mãos sobre ela e afetuosamente a definiu como “filha de Abraão” (Lc 13,10-17). Por usar esta designação, Jesus advertiu em público que as mulheres seguramente, tanto quanto os homens, herdam os direitos prometidos a Abraão, e à vista de Deus não há nem homem nem mulher.

Em nenhuma parte da Bíblia está estabelecido que os homens têm vantagem sobre as mulheres em termos de acesso à salvação. Contrariamente às tradições rabínicas que ensinavam que as mulheres poderiam ser salvas somente pela união com um devoto homem judeu, Jesus convidou tanto homens quanto mulheres a se voltar para Deus e a aceitar o presente da salvação.

Em outro caso, a defesa e o perdão de Cristo a uma mulher surpreendida em adultério revelaram que Sua definição de pecado e provisão para salvação estabelecia tratamento igual a todos. Quando alguns líderes religiosos trouxeram perante Ele uma mulher surpreendida em adultério, Cristo a defendeu. Ele sabia que os líderes judeus, ao fazer a acusação contra a mulher, estavam, eles mesmos, violando as leis de Moisés.

A lei levítica estipulava que ambos, homem e mulher, deviam ser submetidos a julgamento em tais casos (Lv 20,10), mas os críticos de Jesus trouxeram apenas a mulher, e não os homens envolvidos no suposto ato. A lei também requeria pelo menos duas testemunhas (Dt 19,15), mas os fariseus não levaram nenhuma. A resposta de Cristo não somente deu à mulher acusada o benefício da lei, mas também mostrou aos presentes que Seu evangelho de perdão, baseado no arrependimento, estava aberto a todos. Assim Ele disse esta notável frase: “Aquele que dentre vós estiver sem pecado seja o primeiro que lhe atire pedra” (Jo 8,7). Em outras palavras, Jesus disse aos homens: se vocês têm coragem de acusá-la, primeiro olhem para vocês mesmos em um espelho.

Jesus permitiu a uma mulher pecadora ungi-Lo. Quando Jesus foi convidado para uma festa na casa de Simão em Betânia, uma mulher conhecida no povoado por sua má reputação lançou-se aos pés de Jesus e o ungiu. Aqueles que estavam reunidos na festa, incluindo Seus discípulos, condenaram o incidente. Como era possível uma mulher pecadora tocar os pés do Messias, ungi-Lo e secar Seus pés com seus cabelos? Uma ofensa absoluta às tradições religiosas! Os que estavam ao redor de Jesus não podiam entender, muito menos aceitar, o ato de uma mulher ou a atitude de Jesus em permitir que ela fizesse o que fez. Mas Jesus disse que a mulher ao ungi-Lo fez uma bonita ação, mostrando às gerações futuras que, como ela, todos os pecadores podem ter a certeza da salvação ao ir até o Salvador e colocar sua vida a Seus pés, em rendição (Mc 14,1-9; Lc 7,36-50).

Jesus usou homens e mulheres para simbolizar os atos de resgate de Deus. Em Lc 15, Jesus contou três parábolas para ilustrar a profunda e eterna verdade da procura de Deus pela humanidade perdida. Ao passo que as parábolas da ovelha perdida e do filho pródigo ilustram a procura de Deus através de figuras masculinas, do cuidado do pastor e o amante pai, a parábola da moeda perdida revela a procura de Deus através da cuidadosa e persistente missão de uma mulher que não sossegou até encontrar a moeda e regozijar-se com seus amigos (Lc 15,8-10). Para os ouvidos legalistas daquela época isto deve ter soado herético.

Jesus dignificou as mulheres como primeiras testemunhas do maior evento da história humana – Sua ressurreição. As tradições rabínicas consideravam as mulheres como mentirosas por natureza. Conceito que advinha da reação de Sara ao ser dito que ela teria uma criança (Gn 18,9-15). No modo de pensar deles, a negação e o riso de Sara caracterizavam-se como uma mentira diante de Deus que sempre diz a verdade. Assim, por causa dela, todas as mulheres descendentes eram consideradas mentirosas.

Nenhuma mulher era aceita como testemunha. Todavia, Jesus rejeitou esta perversa tradição e escolheu mulheres como as primeiras testemunhas de Sua ressurreição (Mt 28,8-10), “constituindo-as não somente como as primeiras receptoras da mais importante mensagem do cristianismo, mas as primeiras a proclamá-la”. Jesus reprovou os discípulos por não crerem no testemunho daquelas mulheres (Mc 16,14) e desta maneira incentivou-os a rejeitarem os preconceitos do passado e caminharem à luz de Seu reino, no qual não há nem homem nem mulher.

No relato bíblico da vida de Cristo “as mulheres nunca são discriminadas”. (Leonardo Boff. El Rostro Materno de Dios: Ensayo Interdiciplinar sobre lo Femenino y sus Formas Religiosas, Madri, Paulinas, 1988. p. 83. [Em português: O Rosto Materno de Deus. 9ª ed. Rio de Janeiro, Vozes, 2003).

Não há nada que respalde a visão cultural e religiosa da Sua época que via a mulher como inferior. Pelo contrário, “a atitude e a mensagem de Jesus significaram uma ruptura com a dominante visão mundial”.

Jesus “não identificou as mulheres em harmonia com as normas do sistema patriarcal de seu tempo nem tomou parte no sistema como era, por definição, repressivo para as mulheres”. Abertamente mas sem fanfarra, Jesus proferiu um golpe mortal na praga da tradição que negava dignidade às mulheres. Através de Seu exemplo e ensino, Jesus reclamou para Seu novo reino as bênçãos de Sua criação original, a igualdade dos dois gêneros à vista de Deus.

            Diante desta atitude revolucionária de Jesus, nos vem a pergunta: Por que Jesus não constitui Apostolas, mas só apostolos? Tal indagação ainda não respondida, leva a Igreja a não sentir-se confortável em ordenar mulheres.

            Há possibilidade Jurídica para se ordenar mulheres, no grau do diaconato? Quais as funções reservadas pelo direito aos diáconos na atual legislação da Igreja? E, uma mulher pode realiza-las?

            No início da Igreja os apóstolos criaram o diaconato para assistir os órfãos e as viúvas (At 6,1-10). Com o passar do tempo foi incluso à missão dos diáconos à mesa (caridade), Palavra (pregação/catequese) e o altar (ações litúrgicas).

            Na atual legislação os diáconos podem ser provisórios – destinados ao presbiterato – ou permanentes – homens já casados, com 35 anos no mínimo, que com a autorização de suas esposas, podem entrar no Estado Clerical.

            Os diáconos, na liturgia dominical lhes reserva a proclamação do Evangelho, auxiliar o sacerdote no altar, convidar a assembleia para o ósculo da paz e a despedida da assembleia no final da celebração eucarística.

            Podem ser convidados a proferirem pregações e/ou a homilia (cc. 764; 767 §1º), podem oficiar a celebração do batismo (c.861 §1º), são ministros ordinários da comunhão Eucarística (c. 910 §1º), podem expor e realizar a bênção solene da Eucaristia (c. 943), podem oficiar o matrimônio caso sejam delegados pelo Ordinário do Lugar e/ou o Pároco (c. 1108 §1º), celebrar exéquias eclesiásticas (c. 1168), celebrar bênçãos (c. 1169 §3º).

            Podem governar uma paróquia em determinadas circunstâncias (c. 517 §2º), devem rezar a liturgia das horas (c. 276 §2º), tem obrigações específicas (c. 288) e, caso tenham dedicação exclusiva à Igreja devem receber honesta remuneração (c. 281 §3º).

            Tais atribuições podem também ser concedida as mulheres na Igreja: pregações (c. 776), oficiar o batismo (c. 861 §2º), ministros da comunhão eucarística (c. 910 §2º), oficiar extraordinariamente o matrimônio, dentro dos limites expostos no cânon 1112, ser ministros das exéquias eclesiásticas (c. 1168), celebrar algumas bênçãos conforme o atual ritual de bênçãos. Podem também governar paróquias (c. 517 §2º).

            Portanto, na atual legislação da Igreja não há nada que impeça que uma mulher possa exercer todas as funções permitidas a um diácono. Além do mais podem ser diaconisas permanentes celibatárias ou casadas com a expressa autorização do marido, conforme a atual disciplina da Igreja. Não há do ponto de vista doutrinal, bíblico, jurídico, sociológico, filosófico nada que contradiga a constituição de mulheres ao ministério ordenado de mulheres no grau do diaconato. Pode ser, antes do que muita gente pensa que esse postulado seja consagrado pelo Papa Francisco.