O ABORTO NOS DOCUMENTOS DA IGREJA CATÓLICA
A Igreja, nos seus documentos oficiais, é constante na
condenação do aborto. O elemento central dessa argumentação é a defesa da vida,
reiterada como um princípio absoluto, imutável e intangível. A existência de
uma pessoa humana, sujeito de direitos, desde o primeiro momento da concepção é
o pressuposto para se considerar a interrupção de uma gravidez como um ato
homicida em qualquer momento da gestação e sob quaisquer condições. Assim,
esses dois elementos – a sacralidade da vida humana e a condição de pessoa do
embrião – fundam a condenação incondicional do aborto, integrando argumentos de
ordem religiosa, moral e biológica.
EVOLUÇÃO DA DOUTRINA CATÓLICA SOBRE O ABORTO
O texto mais comumente invocado em favor da afirmação
de que a condenação absoluta do aborto no cristianismo é parte de sua tradição
mais antiga, é a Didaqué, a instrução dos doze apóstolos. Trata-se de um
manual catequético, possivelmente escrito na Síria, no final do século I ou
início do século II, para o ensino das verdades religiosas. É o mais antigo
documento cristão depois do Novo Testamento. No entanto, mesmo em
relação a esse documento, divergências podem ser encontradas. Discute-se a
tradução feita do grego, afirmando que este não diz “Não matarás o filho no seio de sua mãe”, mas: “Não matarás o filho em ruínas”. Esta discussão não invalida a
tradução até hoje divulgada, pois as “ruínas” pode ser uma criança com má
formação somática, já que era habitual o infanticídio de crianças com deformidades
físicas na antiguidade.
O estudo dos primeiros escritos cristãos – chamados
padres da Igreja e dos teólogos dos séculos iniciais do cristianismo –, mostra
um panorama bastante diversificado.
Os autores da Igreja primitiva condenavam o aborto
como pecado grave, mas a condenação se referia a um feto cuja forma é completa
e, por isso, possuidor de alma. Se o feto não estava animado, isto é, se ainda
não lhe havia sido infundida uma alma, não havia assassinato.
O Concílio de Ancira, na Ásia Menor (hoje, Ancara),
por exemplo, em 314, distingue a pena aplicada ao homicídio (pena de morte) da
que é proposta para o aborto, reduzindo-a para dez anos de prisão. São
Jerônimo, no século IV, reconhece que, até essa data, “não há doutrina oficial da Igreja sobre o tema da animação do feto.
Isto significa que, para os teólogos da época, era perfeitamente válido assumir
qualquer das duas hipóteses propostas”, isto é, da animação imediata ou
tardia.
Em relação a Agostinho (354-430d.C.), é conhecida passagem
do bispo de Hipona em favor da afirmação da distinção entre feto animado e não
animado: “Se o que é (informater) informe, como uma espécie de ser
vivo, uma coisa sem forma, então a lei do homicídio não se aplicará, pois não
se pode dizer que haja uma alma viva no corpo que carece de sentidos, já que
ainda não se formou (nondum formata) e não está dotado
de sentidos”.
Vários estudiosos modernos, após analisar os
comentários aos textos agostinianos, conclui: “Honesta e objetivamente não se pode afirmar que Santo Agostinho
assegure como certo que existe pessoa humana desde o primeiro instante da
concepção. O mais correto é ater-se ao que ele mesmo assegura: que não sabe
sobre o assunto mais do que aquilo que propõe São Jerônimo. E já vimos que São
Jerônimo coloca as diversas hipóteses debatidas à época, mas não toma partido
por nenhuma delas, reconhecendo que não sabe quando sucede a animação”.
Nos textos da época, pode-se afirmar que o aborto é um
pecado passível de punição, porque revela a intenção de ocultar a fornicação e
o adultério. Era comum gravidezes fora do casamento serem interrompidos pelo
aborto. Para Santo Agostinho, o problema do aborto é que, tal como o controle
da natalidade, ele destrói a conexão necessária entre o ato conjugal e a procriação.
Não se trata de um homicídio, mas de um pecado sexual.
A literatura penitencial iniciada na Igreja Celta, no
século VI, tratou o aborto como uma falta séria, mas impôs penas
diversificadas, segundo os costumes de cada lugar. Nesse catálogo de faltas e
de penalidades, o aborto era tratado como um possível ato pecaminoso e, em
geral, não estava entre os pecados mais graves. Faltas como a adivinhação, o
suborno e o roubo recebiam, muitas vezes, penas mais severas.
Trabalhando com a hipótese da animação tardia, comum à
época, os catálogos penitenciais estipulavam uma gama variada de castigos,
sendo mais leve a pena quanto mais inicial era a gestação interrompida. A
diversidade de penas indica, assim, o reconhecimento de uma diferença entre o
fruto da concepção em seus primeiros estágios e no correr de seu
desenvolvimento. O importante é “comprovar
que não há unanimidade na Igreja primitiva sobre a interpretação do aborto em
termos de homicídio. E que as correntes teológicas de tempos anteriores sobre a
animação do feto refletem-se claramente na legislação penitencial eclesiástica,
fazendo variar as penas devidas ao aborto”.
Ainda no período que antecede o século XV, podemos
citar, o Decretum Gratiani (Decreto de Graciano), provavelmente de 1140
d.C., também chamado Cânon Aliquando, serviu de base para a elaboração
de um código de leis eclesiásticas: o Corpus Iuris Canonici. Esse
conjunto de leis proposto para toda a Igreja substituiu os penitenciais, de
caráter local, e permaneceu em vigor por quase oito séculos. O Código de
Direito Canônico só foi estabelecido em 1917 e o atual, em 1983. O Código de
Graciano teve profunda influência sobre os procedimentos disciplinares na
Igreja.
Também nesse código de leis o aborto nos primeiros
estágios de desenvolvimento do feto não é considerado um homicídio. A
penalidade canônica é prevista somente para o caso do feto animado. Essa
distinção entre feto animado e não animado prevalecerá na legislação canônica
por muitos séculos. Nesse período, dois papas adotam explicitamente, a posição
de Graciano: Inocêncio III e o Papa Gregório IX, com suas Decretais, ambos do
século XIII.
Deve-se notar também a posição de Santo Antonino
(1389-1459), moralista dominicano e arcebispo de Florença. Além de manter a
diferenciação já aludida, excluindo o caráter de homicídio do aborto praticado
no início da gravidez, remete a decisão de recorrer ao aborto à consciência do
médico, admitindo assim o aborto terapêutico para impedir que a mulher morra no
momento do parto. No entanto, em caso de dúvida sobre a animação do feto,
considera moralmente incorreto o recurso ao aborto.
Na Summa theologiae, III, tit.7, cap.2 , lê-se:
Se o feto não está animado, ainda que o médico “impeça sua animação, não se produz a morte de nenhum ser humano, e se
seguiria o bem de salvar a vida da mãe”.
Chega-se, finalmente, a São Tomás de Aquino
(1225-1274), cujo pensamento teve influência decisiva no desenvolvimento
doutrinal cristão. Na esteira da tradição antiga do cristianismo, Tomás de
Aquino considera o aborto um mal moralmente condenável, mas não necessariamente
um homicídio. Partindo de conceitos aristotélicos, Tomás de Aquino admitia um
desenvolvimento progressivo do embrião através de etapas sucessivas.
Primeiro, a vida é informada por uma alma vegetativa,
“quando o embrião vive como uma planta”;
depois, esta “decai e surge uma alma mais
perfeita, que é, ao mesmo tempo, vegetativa e sensitiva, quando o embrião vive
uma vida animal”. Só então, o embrião recebe uma alma propriamente humana,
racional e se torna um ser humano. Alma, no pensamento de Tomás de Aquino,
refere-se ao princípio vital e atende à especificação de toda forma de vida.
Essa teoria filosófica de Tomás de Aquino, nomeada
hilomorfismo, propõe que “a alma é a
forma substancial do corpo, mas uma forma substancial só pode estar presente em
uma matéria capaz de recebê-la. Assim, o óvulo fertilizado, ou o informater
embrião não pode ter uma alma humana”.
A concepção holomórfica do ser humano implica em uma hominização
tardia. Quer dizer, após a concepção, a passagem pelos sucessivos estágios até
chegar à alma racional levaria 40 dias, no caso de um feto do sexo masculino,
ou 80 dias, no caso de um feto do sexo feminino. Essa ideia de que a alma
racional necessita de todo esse tempo para desenvolver-se levou-o a assumir, em
relação ao aborto, a posição referida acima: embora condenável, não pode ser
qualificado de homicídio quando levado a cabo no início da gestação.
Nos séculos XVI e XVII, desenvolvem-se novas
concepções no campo da moral. Com base na ideia tomista do homicídio indireto,
estabelece-se o conceito de aborto indireto, hoje tratado por aborto
terapêutico. Admite-se que é moralmente válido administrar tratamento médico à
mulher, ainda que isso venha a causar a morte do feto. Trata-se então de um
efeito não procurado em si mesmo, mas provocado inevitavelmente como
consequência da utilização de medidas terapêuticas legítimas na tentativa de
salvar a mãe.
Muitos teólogos medievais defendem a legitimidade do
recurso ao aborto quando a vida da gestante está ameaçada. Tratam essa situação
como uma exceção à norma tradicional cristã de respeito ao ser humano em
qualquer estágio de seu desenvolvimento. Sanchez, famoso teólogo moralista
jesuíta, defende, no século XVI, que o aborto de um feto não animado é
moralmente correto, não só no caso de perigo de morte para a mulher, mas também
em casos de grave prejuízo. Seu argumento é que, nesse caso, não se está
matando uma pessoa humana e, além disso, está se alcançando um grande benefício
para a mulher. Essa posição permanece durante todo o século XVI, começando a
modificar-se somente a partir do século XVII.
Durante os séculos XVIII e XIX, a divergência em torno
da distinção entre aborto de feto formado e de feto não formado continua,
ganhando força a corrente de pensamento que defende a infusão de uma alma
racional no momento da concepção. Porém, ainda em 1713, estudando o problema do
batismo de fetos abortados, a Sagrada Congregação da Inquisição Universal,
depois chamada Santo Ofício (hoje, Congregação para a Doutrina da Fé),
determina: “Se existe uma base para
pensar que o feto é animado por uma alma racional, pode e deve ser batizado
condicionalmente. No entanto, se não existe tal certeza, não deve ser batizado
sob nenhuma circunstância”.
Finalmente, em 1869, o Papa Pio IX adota
explicitamente a teoria da personalização imediata, condenando qualquer aborto
e em qualquer estágio da gravidez, determinando pena de excomunhão a quem quer
que o praticasse. Essa condenação absoluta do aborto, historicamente muito
recente, mantém-se como posição oficial da Igreja até os dias atuais.
A LUTA DA IGREJA CONTRA O ABORTO E A DEFESA DA VIDA
A condenação da interrupção voluntária da gravidez
funda-se numa proposição de fé, segundo a qual a vida humana tem caráter
sagrado por ser um dom divino. Paulo VI, citando Pio XII, não deixa dúvidas:
"Cada ser humano, também a criança
no ventre materno, recebe o direito de vida imediatamente de Deus, não dos
pais, nem de qualquer sociedade ou autoridade humana".
Atentar contra a vida é atentar contra o próprio Deus.
Do direito à vida derivam todos os outros direitos, dos quais aquele é condição
necessária. Assim, o mandamento divino: Não matarás refere-se à
sacralidade da vida, que deve ser respeitada, por vontade divina, segundo um
princípio abstrato, absoluto, universal e aplicável a todos os seres humanos.
Uma vez que, segundo o magistério da Igreja, desde o primeiro momento da
fecundação há uma pessoa humana completa, o aborto torna-se um ato moralmente
inaceitável e condenável, verdadeiro homicídio, i.e., um atentado contra a vida
e, consequentemente, contra Deus, criador da vida, um pecado gravíssimo.
O aborto é condenado por provocar a morte de um ser
humano considerado inocente, o que constitui uma situação de tríplice
injustiça: contra a soberania de Deus, único Senhor da vida; contra o próximo,
que é privado do direito de existir como pessoa; e contra a sociedade, que
perde um de seus membros. A inocência presumida do nascituro vem do fato de ser
ele incapaz de ato moral. Considera-se, além disso, sua situação de ser
indefeso incapaz de proteger-se de uma agressão.
O direito à vida apresenta-se como um direito ao mesmo
tempo sagrado, natural e social. Ainda que a realização de um aborto possa
conduzir ao alcance de certos bens, como a saúde ou a vida da mãe, ele é sempre
injustificável. Outras razões, como as dificuldades que possa significar um
filho a mais, especialmente se apresenta anomalias graves, a desonra, ou o
desprestígio social, ainda que consideráveis, também não legitimam o ato
abortivo: “deve-se sem dúvida afirmar que
jamais alguma dessas razões possa conferir objetivamente o direito de se dispor
da vida de alguém, mesmo em sua fase inicial”.
O respeito à vida humana tem ainda como referência a
lei natural. Trata-se de um instinto humano a ser respeitado por crentes e não
crentes: “Para quem acredita em Deus,
isso é espontâneo e intuitivo e é obrigatório por lei religiosa e
transcendente; e também para quem não tem essa dita de admitir a mão de Deus
protetora e vingadora de todos os seres humanos, é e deve ser intuitivo, em
virtude da dignidade humana, esse mesmo sentido do sagrado, isto é, da intangibilidade
própria de uma existência humana vivente”. A invocação da lei natural é
continuamente reiterada e coloca as bases para a proposição da universalidade
dos princípios morais no campo da reprodução humana.
Os documentos do episcopado brasileiro seguem na mesma
linha de argumentação dos papas e do Vaticano. Afirma-se a sacralidade da vida
humana, dom de Deus, deduzindo-se daí a ilicitude de todo e qualquer ato
abortivo. Em documento de 1984, a CNBB propõe: "Por ser supremo dom natural de Deus, toda vida humana deve ser
preservada desde o primeiro instante da concepção, sustentada, valorizada e
aprimorada. São inaceitáveis, como atentados contra a vida humana, o aborto
diretamente provocado, o genocídio, o suicídio, a eutanásia, a tortura e a
violência física, psicológica ou moral, assim como qualquer forma injusta de
mutilação".
QUANDO SE INICIA A VIDA HUMANA PARA A IGREJA?
As intervenções da Igreja assumem como dado definitivo
e inquestionável que, desde a concepção, há uma vida humana em gestação. Há a existência
de uma pessoa humana desde o primeiro momento da fecundação. A ciência comprova
a natureza totalmente humana e pessoal do embrião. Há o reconhecimento pelos
cientistas de que desde o momento da fecundação existe uma realidade celular
distinta do óvulo e do espermatozóide, o zigoto, que dispõe de código genético
próprio e é, indiscutivelmente, vida humana.
O zigoto é uma pessoa humana, gozando de todos os
direitos inerentes a ela. Isto porque, possuindo um código genético completo, o
desenvolvimento do zigoto dá-se em um processo contínuo, sem interrupção e por
autogestão, culminando na pessoa humana, mesmo ainda no ventre materno. Há uma
outra corrente de caráter mais filosófico. Considera o zigoto como pessoa
humana em potencial, mas equivalente – com o mesmo valor e os mesmos direitos –
à pessoa humana em ato, isto é, o indivíduo nascido.
Para ambas as interpretações, a interrupção de um
processo gestacional é considerado um ato homicida, seja porque tira a vida de
uma pessoa humana, – o zigoto – seja porque eliminar uma vida potencial
equivale à eliminação de uma vida em ato. O princípio moral que deve prevalecer
é o de deixar agir a natureza seguindo seu curso normal, isto é, conduzindo, em
um processo unívoco e contínuo, ao desenvolvimento de uma pessoa humana.
Vários episcopados retomam os argumentos científicos
como fonte de legitimação de suas posições. Em 1971, aparecem declarações dos
bispos americanos, holandeses e franceses. Em 1974, os bispos austríacos
escrevem ao chanceler do país: “Os bispos
viram suas posições reforçadas pelas opiniões de especialistas da medicina”.
Também o episcopado alemão manifesta-se em 1974: “A biologia moderna estabeleceu sem contestação que não existe nenhum
estágio pré-humano do embrião no seio materno”. A CNBB segue na mesma
linha. Em documento datado de 1993, afirma: “Cientificamente, já não restam dúvidas: o feto, no ventre materno,
distingue-se do corpo da própria mãe. É outro ser, é intocável”.
No entanto, o documento da Congregação para a Doutrina
da Fé restringe o papel da ciência: “De
resto, não pertence às ciências biológicas dar um juízo decisivo sobre questões
propriamente filosóficas e morais, como são a do momento em que se constitui a
pessoa humana e da legitimidade do aborto." A Igreja se coloca como
instância de julgamento ético acima da ciência, chamando a si o direito de
definir a moralidade da ação abortiva: "Ora, sob o ponto de vista moral,
isto é certo, mesmo que porventura subsistisse uma dúvida concernente ao fato
de o fruto da concepção já ser uma pessoa humana: é objetivamente um pecado
grave ousar correr o risco de um homicídio. 'É já um homem aquele que o viria a
ser'”.
Dos primórdios da Igreja, assim como os ensinamentos
mais recentes de papas anteriores e do Concílio Vaticano II. A ideia repetida é
a de que o aborto foi sempre condenado. Em 1973, diz Paulo VI: “Bem sabeis que a Igreja sempre condenou o
aborto, o que os ensinamentos do nosso Predecessor de venerável memória Pio XII
(...) e os do II Concílio Vaticano (...) não deixaram de confirmar, com a sua
imutada e imutável doutrina moral”.
A Declaração sobre o Aborto Provocado, de 1974, inicia
com a rememoração dessa condenação contínua: “Apoiada na Sagrada Escritura, a Tradição da Igreja considerou sempre
que a vida humana deve ser protegida e favorecida desde o princípio, assim como
nas diversas fases do seu desenvolvimento. Nessa perspectiva, a ilegitimidade
do aborto provocado é um ensinamento constante e sem lacunas, que se pode
encontrar nos padres da Igreja, nos teólogos da Idade Média, em diversos
documentos do Magistério Episcopal e Pontifício. Todo aborto deve ser
absolutamente excluído”. Nesta Declaração, reconhece-se a existência de
opiniões divergentes e os fiéis são alertados para a distinção entre o que são
opiniões novas e o que é a doutrina apresentada com autoridade pela Igreja: “(...) conta que todos os fiéis, incluindo
mesmo aqueles que possam ter se sentido abalados pelas controvérsias e pelas
opiniões novas, compreendam que não se trata de opor uma opinião a outra, mas
sim de transmitir-lhes uma doutrina constante do Magistério supremo, que expõe
a norma e os costumes, sob a luz da fé”.
Não há direito da mulher ao próprio corpo,
quando se refere ao nascituro. Só há direito quando a vida humana não está em jogo.
OUTRAS POSIÇÕES SOBRE O INÍCIO DA VIDA HUMANA
Em relação aos dados científicos, há uma concordância
em torno da ideia de que eles não permitem afirmar com certeza a existência de
uma pessoa humana desde os primeiros momentos da fecundação. Parece, ao
contrário, mais provável que somente algum tempo após a concepção se possa
admitir estar diante de uma pessoa humana em gestação. A argumentação aduzida
em favor dessa concepção se baseia no fato de que não basta a existência de um
código genético – o DNA – no zigoto para que se gere uma pessoa humana. Além
disso, o desenvolvimento do zigoto não se dá em um processo contínuo, pois há
mudanças qualitativas consideráveis no período embrionário. Nesse processo,
entram em jogo inúmeros elementos, endógenos e exógenos, de maneira que não se
pode argumentar que a pessoa está potencialmente no zigoto e que a passagem ao
ato de tornar-se pessoa será automática.
Outro dado científico levantado é o de que a
individuação se dá na segunda semana da gestação, no momento em que se dá a
nidificação, ou fixação na matriz. Ora, se filosoficamente o que constitui a
pessoa é o fato de que se trata de um indivíduo, uno e único, a fixação da
individualidade não pode se dar antes da nidificação. O dado científico em
favor dessa teoria é o de que, no caso da geração de gêmeos, a divisão do
embrião em dois indivíduos ocorre somente após esse processo.
Pode-se ainda usar como argumento a ocorrência da
perda extraordinária de zigotos antes da fixação do óvulo fecundado. Calcula-se
que em torno de 75% dos zigotos são eliminados antes de se implantarem na
matriz. Esse dado leva muitos estudiosos a se perguntarem se, de fato, a
natureza eliminaria tantas pessoas ou se esse processo não estaria
indicando, ao contrário, que não existem elementos estruturais no zigoto que
permitam reconhecê-lo como tal.
Finalmente, o recurso à ciência leva à consideração do
desenvolvimento da consciência humana como critério para o estabelecimento da
existência ou não de uma pessoa humana. Seguindo Bernard Häring: “Desde Teilhard de Chardin se reconhece que a
hominização ocorre pela emergência da consciência humana. (...) Quer dizer,
reconhece-se que o especificamente humano se dá com o surgimento da
consciência. Afirma-se que a realidade de transcendência que caracteriza o ser
humano e o diferencia de outras espécies animais é precisamente a consciência.
Mas não há possibilidade de consciência sem vida cerebral. Em outras palavras,
a hominização de cada ser humano supõe a 'emergência' ou o surgimento de sua
consciência”.
O substrato orgânico indispensável para que possa
existir consciência é o cérebro. A célula geradora do córtex cerebral inicia
seu desenvolvimento no 15º dia após a concepção e somente em torno da 8ª semana
está suficientemente desenvolvido para que se possa detectar a atividade
cerebral. Parece, assim, segundo esses dados biológicos que só se pode propor a
existência de uma pessoa humana, a partir da existência do córtex cerebral,
condição indispensável para que haja consciência humana.
Para mostrar a importância da consciência no
estabelecimento da pessoa, alguns pesquisadores propõe a hipótese de que se
transplantassem todos os órgãos de um indivíduo para um outro corpo: não
haveria, nesse caso, um transplante de pessoa. Mas se se chegasse a
transplantar o sistema cerebral de um corpo a outro, ocorreria certamente um
transplante de pessoa.
Na bibliografia recolhida a respeito dessa discussão,
encontra-se um número considerável de teólogos e outros especialistas católicos
que propõem que não se pode falar de pessoa humana em relação ao fruto de uma
concepção em seus primeiros estágios. Pesquisadores em um encontro na cidade de
Bogotá propõe que somente após a 6ª ou 8ª semana se poderia admitir a
existência de uma pessoa. Para ele, apenas um acordo ético, racional,
estabelecido em um diálogo interdisciplinar pode chegar a definir o valor ético
da realidade humana em desenvolvimento. Propõe a busca de um novo paradigma de
valoração das realidades biológicas e de estabelecimento do que é ou não
natural.
Paul Ladrière critica à encíclica Humane Vitae,
de Paulo VI, nela o Papa enquadra todo o ser humano numa visão estritamente
biologista. Através dessa encíclica o papa torna a biologia norma de
moralidade. O fundamento da ética. Diz ele: nessa encíclica, "a mulher é submetida às leis biológicas que
a marcam em seu corpo. Jamais a autoridade pontifícia havia ousado ir tão longe".
Na mesma linha, Ladrière, discuti a chamada lei
natural, apresentada como expressão da vontade divina, perdendo-se de vista sua
dimensão histórica. Além de referir o célebre biólogo Jaques Monod, para o qual
não há indivíduo até o 5º ou 6º mês da gestação, quando se forma o sistema
nervoso central, invoca outro cientista dessa área de estudo: Y.F. Jacob. Ele
afirma que não há solução para o problema do início da vida, pois esta “não começa nunca, mas continua há cerca de 3
milhões de anos. Um espermatozóide isolado ou um óvulo não é menos vivo que um
óvulo fecundado”.
O autor qualifica a vida humana. Únicos seres capazes de
entrar em relação com o mundo e com outras pessoas. É a relação de
reconhecimento dos pais que chamam o filho a nascer que "revela, se não
instaura, o caráter humano do ser em gestação. É o humano, não a natureza, o
que humaniza". Portanto, para o autor não é um contra senso o aborto.
Roqueplo, padre dominicano, também considera
inadmissível que a biologia seja colocada como fundamento da ética, ainda que a
ciência nos ensine muito. Thibault distingue um óvulo fecundado de uma pessoa
humana. “Fecundar um óvulo é
relativamente fácil, seja in vitro,
seja 'ao vivo': exige apenas alguns segundos; enquanto que fazer uma pessoa
exige pelo menos 20 anos”.
Ela questiona se a questão do respeito ao óvulo
fecundado não seria uma fuga dos verdadeiros e graves problemas colocados pela
fabricação de um ser humano. Thibault faz a seguinte observação: “conforme meu ponto de vista, é preciso
considerar que são, muitas vezes, as exigências da fabricação de uma verdadeira
pessoa humana que levam à obrigação de sacrificar um certo número de óvulos
fecundados, tenham sido eles fecundados artificialmente ou naturalmente”.
As proposições de Roqueplo e Ladrière, como as de
Thibault e outros, constituem o que alguns chamam de a posição francesa.
Caracteriza-se por ser das mais radicais, em termos da compreensão das relações
entre definição do que é propriamente humano e determinações biológicas.
Em sua apreciação da chamada posição francesa, Anjos
julga que, embora seja discutível do ponto de vista argumentativo propor que a
identidade pessoal do nascituro dependa da aceitação de terceiros, a
consideração das consequências de uma gravidez não deve ser dispensada na
argumentação moral sobre o aborto.
Outra consideração do autor refere-se à incerteza
quanto ao momento em que, após a concepção, se pode falar da existência de uma
pessoa humana. Como estabelecer normas morais operativas quando se apresentam
motivos para se interromper uma gravidez? Anjos discute o argumento segundo o
qual no embrião há um "gérmen de vida", indicador da "intenção
de Deus de ali suscitar uma pessoa humana", concluindo-se daí uma norma
proibitiva do aborto.
CRÍTICAS À POSIÇÃO DA IGREJA
1ª Crítica:
Teologicamente, a defesa incondicional da vida é
colocada pela fórmula “só Deus é o Senhor
da vida”. Já a abordagem de caráter filosófico invoca o direito à vida, alicerçado
na perspectiva da lei natural.
Retira-se assim das pessoas a responsabilidade sobre o
cuidado devido à vida humana. Além disso, embora se possa aceitar como
teologicamente correto que “Deus é a
fonte última do direito à vida, isto não resolve o problema de 'como' os seres
humanos devem respeitar esse direito ou como enfrentar um conflito de direitos”.
Na decisão pela interrupção de uma gravidez, entram em jogo outros importantes
direitos a serem respeitados. Não se pode, a priori, defender a primazia do
direito à vida sobre todos os outros direitos humanos: o direito de sobreviver,
o direito de uma vida digna etc.
2ª
Crítica:
Outro problema colocado é o antropomorfismo teológico.
De acordo com essa compreensão, há um envolvimento direto e imediato de Deus na
causalidade humana. Isso significa que a divindade é o agente que atua
diretamente no mundo e na vida das pessoas. Deus é o único responsável pela
vida ou morte de alguém. As nossas responsabilidades de decisão, muitas vezes
angustiantes, são transferidas para Deus. Será que Deus é responsável por todas
as pessoas que morrem de morte violenta? A glória de Deus se manifesta no agir livre
e racional do homem.
3ª
Crítica:
A ideia do domínio de Deus sobre a vida conduz à
proposição de que não é lícito, sob hipótese alguma, “tirar diretamente a vida de um ser humano inocente”. No entanto,
especialistas católicos em teologia e moral discutem os termos dessa
proposição. McCormick coloca a seguinte questão: “Por que somente a morte diretamente provocada de um inocente é
considerada moralmente errada? Por que tal julgamento não vale para qualquer
assassinato?” Para ele, a única resposta possível é que “em alguma situações de conflito (p.ex.
autodefesa, guerra), matar pode significar a melhor maneira de defender a vida
mesma”. Tal conclusão assenta-se sobre uma avaliação dos efeitos de duas
alternativas possíveis. Julga-se o que aconteceria se alguns homicídios não
fossem permitidos. A proteção da ordem pública, no caso da guerra e da pena de
morte, e a proteção da própria vida, no caso da legítima defesa, justificam a
exceção à regra de que não se pode matar, porque as alternativas, nos casos em
questão, significariam uma multiplicação de violações humanas, infrações e
perda de vidas. Isto é, a alternativa à permissão de matar seria “a vitória do pecado e sua gradual extensão,
com perda crescente de vida". Por isso, "por mais lamentável que
seja, se tirar uma vida é o único meio efetivo (de defendê-la), torna-se
aceitável fazê-lo”.
Note-se assim que não matar é um princípio moral
formal, do qual deriva a aplicação: não matar diretamente um inocente. A
crítica relativa à absolutização do princípio de defesa da vida respalda-se
ainda no fato de que a mesma Igreja admite, tradicionalmente, algumas exceções
que põem em jogo a pretendida incondicionalidade. Reconhece-se, na argumentação
tradicional, o aborto indireto, no qual se tira uma vida humana. Também é
moralmente justificado, no discurso oficial, o homicídio, nos casos de legítima
defesa, da guerra justa e da pena de morte.
O argumento segundo o qual, no caso do aborto, essa
absolutização teria validade porque se trata da vida de um ser inocente, na
verdade não se aplica. “Tratando-se de um
valor primordial e fundamental, deveria valer para todos, inocentes ou não, se,
de fato, fosse um absoluto”.
CRÍTICAS AO POSICIONAMENTO UNILATERAL DA IGREJA
No discurso oficial católico é recorrente a acusação
de imoralidade ou de amoralidade, lançada à sociedade moderna. O laxismo, o
hedonismo, a busca individualista do prazer são consideradas marcas
características das sociedades contemporâneas. Assim, o aborto seria a
expressão de uma sociedade incapaz de acolher as crianças.
Pohier, sacerdote católico, discute a afirmação
eclesial da degradação da mentalidade atual, no que diz respeito ao tratamento
da infância, comparativamente ao que ocorreu em tempos anteriores. Ele
argumenta que, ao contrário, as sociedades contemporâneas demonstram maior
acolhida e atenção às crianças. Nossa sociedade, diz ele, apesar de suas
falhas, muitas vezes radicais, coloca fortes exigências aos pais, à família e a
outros grupos sociais em relação a seus deveres para com a infância, prevendo
mesmo punições para os casos de desrespeito às normas estabelecidas nesse
campo. Para ele, o problema, na verdade, não é a discussão sobre o quanto é ou
não suficientemente boa a sociedade. Quando a Igreja coloca assim o problema,
ela falseia os dados da questão, tornando problemática sua forma de argumentar.
Ainda em relação ao julgamento negativo que faz a
Igreja sobre quem se recusa a aceitar que o aborto seja sempre, e em qualquer
circunstância, uma falta grave e um sinal de imoralidade, Pohier reage: “Digo apenas que pessoalmente, me é
impossível taxar globalmente os corpos médicos suíços, americanos, russos,
ingleses, tunisianos, japoneses, iugoslavos, suecos etc, taxar as instâncias
mais oficiais destes corpos médicos e a maior parte de seus membros de imoralidade,
porque eles não consideram o aborto sempre contrário à ética médica ou à ética
geral. É totalmente impossível, para mim, taxar globalmente de imoralidade, a
priori, todas as sociedades que elaboraram legislações em que o aborto não é
forçosamente um delito ou um crime. (...) Como cristão, é-me impossível
pretender que as Igrejas anglicanas da Inglaterra, do Canadá, dos Estados
Unidos, que as Igrejas protestantes da Suíça, da Suécia e de outros países,
nada compreenderam do Evangelho
porque elas consideram que o aborto não é forçosamente e sempre um pecado que
se deve evitar a todo o custo. Não digo que é bem porque elas dizem que é bem.
Digo somente que não tenho o direito de agir como se não houvesse senão pessoas
imorais, grupos imorais, sociedades imorais que pensassem assim e que o
problema é mal colocado se começa por apresentá-lo dessa forma”.
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